terça-feira, 24 de novembro de 2009

Quando estava morrendo, aos 90 anos de idade, em 1935, [minha avó] chamou-nos a seu lado e disse, em inglês, com aquele fio de voz: “Não passo de uma velha que está morrendo muito, muito devagar. Não há nada de notável nem interessante nisso”. Não via razão alguma para que a casa toda se alterasse e se desculpava por demorar tanto a morrer.

Meu pai era muito inteligente e, como todos os homens inteligentes, muito bondoso. Certa vez, disse-me que prestasse bastante atenção nos soldados, nos uniformes, nos quartéis, nas bandeiras, nas igrejas, nos sacerdotes e nos açougues, já que tudo isso iria desaparecer, e eu poderia um dia contar a meus filhos que vira essas coisas. Até agora, infelizmente, não se cumpriu a profecia.

Foi ele que me revelou o poder da poesia: o fato de as palavras serem não apenas um meio de comunicação, mas também símbolos mágicos e música.

Sempre fui muito míope e usei óculos, e era um tanto frágil. Como a maioria de meus ancestrais haviam sido soldados e eu sabia que nunca o seria, desde muito jovem me sentia envergonhado de ser um homem de livros e não de ação. Durante toda a minha juventude, pensei que o fato de ser amado equivalia a uma injustiça. Não me sentia digno de nenhum amor em especial e recordo que meus aniversários me enchiam de vergonha, porque todos me cumulavam de presentes e eu pensava que não havia feito nada para merecê-los, que era uma espécie de impostor. Por volta dos trinta anos consegui superar essa sensação.

Minha cegueira vinha avançando gradativamente desde a infância. Foi como um lento entardecer de verão. Não havia nada de patético nem de dramático nela. A partir de 1927 sofri oito operações nos olhos, mas desde fins da década de 50, quando escrevi o Poema dos dons, já estava cego para ler e escrever. Em meu poema falo da magnífica ironia de Deus, que me deu ao mesmo tempo 800 mil livros [como diretor da Biblioteca Nacional] e a noite.

Uma consequência importante da cegueira foi meu gradual abandono do verso livre em favor da métrica clássica. Na verdade, a cegueira obrigou-me a escrever novamente poesia. Já que os rascunhos me eram negados, eu devia recorrer à memória. É obviamente mais fácil memorizar o verso que a prosa, e o verso rimado mais que o verso livre. O verso rimado é, pode-se dizer, portátil. Pode-se andar pela rua ou estar no metrô enquanto se compõe e aprimora um soneto, pois a rima e a métrica possuem virtudes mnemônicas.

A fama, como a cegueira, chegou-me aos poucos. Eu nunca a havia esperado e nunca a havia procurado.

Aos 71 anos de idade, continuo trabalhando e cheio de planos. No ano passado escrevi um novo livro de poemas, Elogio da sombra. A “sombra” do título refere-se tanto à cegueira como à morte.

As pessoas têm sido inexplicavelmente boas comigo. Não tenho inimigos e, se certas pessoas se disfarçaram como tais, elas têm sido demasiadamente gentis para me causar dor. Todas as vezes que leio algo que escreveram contra mim, não só compartilho o sentimento, como penso que eu mesmo poderia fazer muito melhor o trabalho. Talvez eu devesse aconselhar os aspirantes a inimigos que me enviem suas queixas de antemão, com a certeza absoluta de que receberão toda a minha ajuda e apoio. Secretamente, até desejei escrever, sob pseudônimo, uma longa invectiva contra mim mesmo. Ah! As cruas verdades que guardo em meu interior!

Em minha idade, deve-se ter consciência dos próprios limites, pois esse conhecimento talvez possa levar à felicidade. Quando era jovem, pensava que a literatura era um jogo de variações engenhosas e surpreendentes. Agora que encontrei minha própria voz, parece-me que o fato de retocar e voltar a corrigir meus rascunhos não os melhora muito nem os prejudica.

Suponho que já escrevi meus melhores livros. Isso me dá uma espécie de tranquila satisfação e serenidade. No entanto, não acho que tenha escrito tudo. De algum modo, sinto a juventude mais próxima de mim hoje do que quando era um homem jovem. Não considero mais a felicidade inatingível, como eu acreditava tempos atrás. Agora sei que pode acontecer a qualquer momento, mas nunca se deve procurá-la. Quanto ao fracasso e à fama, parecem-me totalmente irrelevantes e não me preocupam. Agora o que procuro é a paz, o prazer do pensamento e da amizade. E, ainda que pareça demasiado ambicioso, a sensação de amar e ser amado.

ensaio autobiográfico - jorge luis borges (1899-1970)

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Ai, os meus olhos míopes. Adolescente, no colégio, eu já sentia que enxergava mal. Mas só fui saber realmente o quanto era míope depois de comprar os primeiros óculos. Olhei a noite, um céu estrelado. Eu não sabia que o céu era assim. Nunca tinha me apercebido da luz das estrelas. Foi uma revelação extraordinária. Eu tinha dezesseis anos... Será que a miopia me faz enxergar as coisas de maneira especial? Talvez. Na verdade não sou um escritor propriamente panorâmico. Sou mais dos close-ups. Os espaços abertos, as paisagens, nunca foram o meu forte.

rachel de queiroz

sábado, 30 de maio de 2009


Não me venha falar na malícia de toda mulher.
Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é.
Não me olhe como se a polícia andasse atrás de mim.
Cale a boca e não cale na boca notícia ruim.
Você sabe explicar, você sabe entender tudo bem.
Você está, você é, você faz, você quer, você tem.
Você diz a verdade e a verdade é o seu dom de iludir.
Como pode querer que a mulher vá viver sem mentir.

dom de iludir - caetano veloso

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Meu pai era ferroviário. Trabalhava na Contadoria da Estrada de Ferro Araraquara. Um homem que gostava de ler e de escrever. Em minha casa tinha uma biblioteca com uns trezentos, quatrocentos livros. Pense bem: um ferroviário do interior, na década de 40, com essa porrada de livros.

Minha família era remediada. Não pobre, porém remediada. Nossa casa era modesta, e o orgulho de meu pai era este: ter casa própria. Foi para ele uma vida infernal rolar entre hipotecas, prestações na Caixa e outras. Mas a casa era dele. Nasci naquela casa, eles (minha mãe já morreu) moram lá até hoje. Houve reformas, mas o chão, a terra é a mesma que esteve embaixo de mim, aquela em que sempre pisei. Penso se não houve algum atavismo, algum simbolismo na necessidade que encontrei, depois de muitos anos de casado, já aos 38 anos, de comprar uma casa. E será que posso encontrar também algum simbolismo no fato de, subitamente, eu me ver sufocado por essa casa, pela sua posse, ansiando por uma liberação? A necessidade de ter a casa sufocou meu pai anos e anos. E, de repente, eu me liberei da casa. Me separei. Me coloquei de novo em disponibilidade.

O primeiro ano foi muito difícil em São Paulo. Eu me transformei num repórter sem saber sequer andar pelas ruas. Cada dia precisava descobrir por própria conta e erro. Eu era tímido para entrevistar as pessoas, precisava me violentar. Morava em pensão, almoçava e mal jantava. Por sorte, dona Nina me guardava o prato. Era comida fria no fim da noite, quando voltava. Ao menos, comia. A Última Hora me pagava 3.000 cruzeiros e eu deixava na pensão 2.500. Tirando os descontos me sobravam 275 para condução, cinema, supérfluos. Ou seja, nada. Eu odiava chuva, porque molhava o sapato, tinha que deixar no forno ou com jornais dentro para secar. Não tinha amigos, não conhecia ninguém. Tímido, introvertido, custava a me ligar a alguém. Mas eu não queria voltar. Voltar seria o fracasso, e eu tinha saído para vencer. Comecei a descobrir a noite, os encantos de ficar pelas ruas, entrar e sair de boates, conviver com os tipos, ver o sol nascer. Passado o primeiro ano, estava fixado. Me tornei paulistano.


ignácio de loyola brandão
viver e escrever (edla van steen)

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Uma criatura

Sei de uma criatura antiga e formidável,
Que a si mesma devora os membros e as entranhas,
Com a sofreguidão da fome insaciável.
Habita juntamente os vales e as montanhas;
E no mar, que se rasga, à maneira de abismo,
Espreguiça-se toda em convulsões estranhas.
Traz impresso no fronte o obscuro despotismo.
Cada olhar que despede, acerbo e mavioso,
Parece uma expansão de amor e de egoísmo.
Friamente contempla o desespero e o gozo,
Gosta do colibri, como gosta do verme,
E cinge ao coração o belo e o monstruoso.
Para ela o chacal é, como a rola, inerme,
E caminha na fera impertubável, como
Pelo vasto areal um vasto paquiderme.
Na árvore que rebenta o seu primeiro gomo
Vem a folha, que lento e lento se desdobra
Depois a flor, depois o suspirado pomo.


machado de assis
exposição no museu da língua portuguesa - são paulo - 2008

terça-feira, 12 de maio de 2009

A novidade que tem no Brejo da Cruz
é a criançada se alimentar de luz.
Alucinados, meninos ficando azuis
e desencarnando lá no Brejo da Cruz.
Eletrizados, cruzam os céus do Brasil.
Na rodoviária, assumem formas mil.
Uns vendem fumo, tem uns que viram Jesus,
muito sanfoneiro cego tocando blues.
Uns têm saudade e dançam maracatus,
uns atiram pedra, outros passeiam nus.
Mas há milhões desses seres que se disfarçam tão bem,
que ninguém pergunta de onde essa gente vem.
São jardineiros, guardas-noturnos, casais,
são passageiros, bombeiros e babás.
Já nem se lembram que existe um Brejo da Cruz,
que eram crianças e que comiam luz.
São faxineiros, balançam nas construções,
são bilheteiros, baleiros e garçons.
Já nem se lembram que existe um Brejo da Cruz,
que eram crianças e que comiam luz.


brejo da cruz - música-doc de chico buarque

terça-feira, 5 de maio de 2009

não durmo
acendo o abajour para clarear
o pensamento
mas não há o que ver
quando não há luz
por dentro

bianca ramoneda

quinta-feira, 30 de abril de 2009

Quando era adolescente não conseguia gostar do meu pai. Para ser sincero, ele era a pessoa que eu mais odiava no mundo. Quando ele chegava em casa, o ar se contaminava com uma névoa tensa e tóxica. Eu o via como um chato opressor e conformista, um eco doméstico do regime militar que reprimia o Brasil, apoiado pelo imperialismo americano. Minha oposição a ele era então mais do que um direito, era um dever ideológico.

Tudo nele me causava repulsa, mas eu havia eleito aquele seu jeito nauseante de comer arroz e feijão, colocando o arroz por cima e o feijão embaixo, como o ato soberano da horripilância universal. A ostensiva correção moral de seu mastigar, justapondo ruidosamente os movimentos da mandíbula com a respiração nasal, me exasperava em níveis galácticos.

Serviu-se arroz e feijão em um fatídico domingo no qual meus avós, pais do meu pai, almoçavam em casa. Eu já devia estar mal-humorado, e ele começou a comer fazendo aquele barulho prepotente de quem vai corrigir o mundo. Me descontrolei e disse, na frente de todos, pra ele parar de comer como um porco nojento. Meu pai me expulsou da mesa, e fui jogar pingue-pongue no pátio do prédio. Horas depois voltei para casa, e meu pai estava bebendo água na cozinha. Ele me olhou com rancor e disse que estava muito ofendido, que não queria mais falar comigo.

Passaram-se muitas décadas, e o passado é um longínquo e incompreensível país estrangeiro. Sinto um amor descomunal pelo meu pai e me preocupo muito com sua saúde, particularmente com a alimentação. Vejo nele delicadeza, generosidade e bom humor – o contrário do que enxergava o adolescente pentelho.

Talvez eu esteja fantasiando, mas no último Natal flagrei uma expressão de desgosto no rosto do meu filho ao me ver mastigar um pedaço de torrone. Tentei ignorar, mas naquela noite não consegui dormir.

Um dos motes mais presentes na liturgia judaica é “le dor va dor”, “de geração em geração”. Uma energia cósmica é descarregada dos pais para os filhos e rebatida dos filhos para os pais – atração que se transforma em repulsa, ódio e amor; vida e morte se estapeando no espaço e no tempo. Nem bons, nem maus, somos meros condutores de uma força que nos transcende.

Tenho 47 anos e ainda não sei bem quem vou ser quando crescer.

henrique goldman, cineasta – revista trip fevereiro 2009

quinta-feira, 9 de abril de 2009

Não tenho medo do sono eterno, mas da insônia eterna.

mario quintana

sexta-feira, 3 de abril de 2009

A lápide de Ozu não tem nome, apenas um antigo ideograma japonês, MU, que significa “vazio”, “nada”.

Eu pensei sobre o símbolo ao voltar no trem. O nada. Quando criança eu sempre tentava imaginar o nada. A idéia me enchia de medo. “Nada” simplesmente não pode existir, eu pensava. Apenas o que é de verdade pode existir. A realidade. Pouquíssimas idéias são mais vazias e inúteis quando aplicadas ao cinema.

Cada um sabe, sozinho, o que significa a percepção da realidade. Cada pessoa vê a sua realidade com seus próprios olhos. Ela vê os outros e, acima de tudo, as pessoas que ama. Ela vê os objetos que a cercam, vê as cidades e os campos onde mora, mas também vê a morte, a mortalidade do homem e a transitoriedade dos objetos. Ela vê e experimenta o amor, a solidão, a felicidade, a tristeza, o medo. Em resumo, cada pessoa vê, sozinha, a vida. E cada pessoa sabe, por si só, o grande abismo que existe entre as experiências pessoais e a representação dessas experiências na tela. Nós aprendemos a aceitar que a grande distância separando o cinema da vida é tão perfeitamente natural que ficamos assombrados quando subitamente descobrimos algo verdadeiro ou real num filme. Não precisa mais do que um gesto de uma criança no fundo do trem, ou um pássaro que passa voando, ou uma nuvem jogando sua sombra sobre a cena durante um instante.

É uma raridade no cinema de hoje encontrar tais momentos de verdade, onde pessoas ou objetos se mostram como realmente são. Isso era o que havia de único nos filmes de Ozu, principalmente nos últimos. Eles eram grandes momentos de verdade. Não apenas momentos; eram verdades duradouras, que se estendiam da primeira à última imagem. Filmes que, verdadeira e continuamente, lidavam com a vida em si, e nos quais as pessoas, os objetos, as cidades e os campos revelavam-se. Tal representação da realidade, tal arte, não se encontra mais no cinema. Um dia, se encontrou.

MU, nada. O que resta hoje.


wim wenders, a respeito dos filmes de yasujiro ozu - tokyo ga

quarta-feira, 1 de abril de 2009

Durante 50 anos, meu pai manteve um diário. Sob pretexto de que sua caligrafia era ilegível, ele ditava o texto para minha mãe. Às vezes, eu ficava escutando atrás da porta. Odiava (e me fascinava) a transformação que as palavras do diário impunham a acontecimentos que eu tinha presenciado e que foram, a meu ver, insignificantes. Na descrição do meu pai, a banalidade do cotidiano se tornava uma vasta produção teatral cujo tema maior era sempre, aliás, o seu amor pela minha mãe.

Por exemplo, num vilarejo perto de Milão, numa tarde de domingo, com um frio de cão e uma chuva de afogar rãs, meu pai procurava o sacristão fantasma que talvez tivesse a chave de uma capela meio destruída, onde, segundo constava, sobravam os restos de um afresco do século 15. Minha mãe devia estar de saco cheio tanto quanto nós.

Mas meu pai ditaria esse transtorno como o encontro encantado do céu cinzento de Lombardia com o sorriso de minha mãe (que ele era o único a ter entrevisto), com a dedicação do sacristão (que, provavelmente, maldisse esse erudito que aparecia num domingo de inverno), com o sublime gesto do pintor (do qual gesto não sobrava quase nada) e, enfim, com o tormento e a esperança dos soldados que, num momento da Segunda Guerra, deviam ter encontrado amparo na capela, cujos muros eram grafitados por balas de metralhadora. Tudo isso convergiria para compor um momento mágico nas páginas do diário e, de fato, na vida dele.

Quando meu pai morreu, fiquei com seus diários. Leio de vez em quando. Não procuro informações sobre sua vida, apenas o segredo de sua paixão de viver e de amar.


contardo caligaris – quinta coluna

terça-feira, 17 de março de 2009

O som de suas palavras se materializa.

chacal, a respeito de guimarães rosa
(o estado de são paulo - 15/03/09)

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Escrever para mim é uma necessidade orgânica. Não conseguiria viver sem escrever, porque só escrevendo consigo expulsar os meus demônios e vencer a minha angústia. É como uma terapia a que me submeto diariamente, desde os quinze anos. Quando eu era rapaz, vivia atormentado por três idéias mórbidas: temia ficar louco, temia o suicídio e morrer cedo. Só escrevendo, escrevendo qualquer coisa, sem parar, até ficar exausto, conseguia afugentar esses temores. Por isso, talvez, tenha sido levado compulsivamente a escrever muita coisa que preferia não ter escrito. Como alguém que se viu obrigado, em circunstâncias adversas, a viver uma vida que não era a sua durante uma parte de sua existência. E, claro, preferia ter vivido só a minha e toda ela.

dias gomes - viver e escrever (edla van steen)

sábado, 21 de fevereiro de 2009

A mocidade é o que os italianos chamam de um nome tão bonito: la stamina. A seiva, o fogo, que permite amar e criar. Quando se perde isso, perde-se tudo.

simone de beauvoir - a mulher desiludida

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Faltavam dois dias para o Natal de 1938. Era meia noite e Arthur Bispo do Rosário descansava no quintal do casarão da família Leone, na Rua São Clemente, 301, em Botafogo, Rio de Janeiro. De repente, a cortina preta que revestia o teto do mundo se rasgou sobre ele e deu passagem a sete anjos de aura azulada e brilhosa. Vinham do céu ao seu encontro. Era um chamado. A noite se fez dia para convocá-lo à sua missão. Bispo recebeu os anjos e os acolheu em algum canto da psique. A glória absoluta: ele era enfim reconhecido. Como Jesus Cristo? “Está falando com ele”, arriscaria a confissão.

Dopado por um exército angelical, entre visões e quimeras, Bispo saiu pela rua deserta, na abafada noite de 22 de dezembro. Peregrino da solidão, estava acostumado a caminhar sem paradas obrigatórias, madrugada adentro, naquele Rio da década de 30. Ele bateu o portão da casa da São Clemente, no sopé do Morro Dona Marta, andou alguns quarteirões e subiu no primeiro bonde que o levaria a seu destino. Ao patrão, o advogado Humberto Magalhães Leone, disse apenas que iria se apresentar na Igreja da Candelária.

Botafogo, Flamengo, Catete, Centro. Aquela seria mais uma de suas andanças insones, não fossem a luz azul, o reconhecimento e a fileira de cruzes na Rua Primeiro de Março. Candelária, Igreja São José, Mosteiro de São Bento: o cavaleiro errante fez daquele roteiro mágico a sua rua da amargura. Arrastou-se por uma via crúcis dois dias, escoltado por anjos, subjugado por ordens do além.

Bispo jurava que uma cruz luminosa lhe riscava as costas. Poder sagrado e aferido. Pois o grande dia havia chegado, e ele era então reconhecido por seres invisíveis. Guiado por imagens, arrastado por vozes que sopravam segredos ao ouvido, Bispo se apresentou. O ponto final daquele calvário de delírios foi o Mosteiro de São Bento. Depois de peregrinar pela cidade, ele entrou no templo do centro e anunciou à confraria de padres: Vim julgar os vivos e os mortos.

Silêncio apostólico. Perdido no vácuo entre o fato e a ficção, Bispo entendeu que os frades do Mosteiro o reconheciam. Afinal, era um enviado de Deus, trazia a marca do crucifixo gravada no corpo. O dia 24 de dezembro de 1938 foi um divisor de águas psíquico para Arthur Bispo do Rosário. Os sinos dobravam por ele naquele Natal, os céus se abriam para reverenciar sua majestade, mas ele acabaria sob o domínio da autoridade máxima na Terra.

Bispo, despejado da sanidade, rendido a fantasia no centro do Rio, foi enviado ao hospício da Praia Vermelha. Numa noite de Natal, ele saltou do delírio para a realidade crua. Ou vice-versa.


luciana hidalgo – arthur bispo do rosário, o senhor do labirinto
Trancado num quarto-forte da Colônia Juliano Moreira, hospício carioca,
Arthur Bispo do Rosário criou, ao longo de cinquenta anos, um mundo novo.
Miniaturas, mantos, estandartes brotaram de suas mãos, ganharam cor,
deram sentido à sucata recolhida, aqui e ali,
pelos internos e funcionários do asilo psiquiátrico.
Bispo morreu em 1989.
Em 1995, seus bordados, assemblages e estandartes
representaram o Brasil na Bienal de Veneza
e foram requisitados para mostras em Paris e Nova York.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Estive sempre de pé no ônibus, espremido entre o ferro
da cadeira e o rumor dos passageiros.
Educado a ser o último, cedi o lugar a gestantes e idosos.
Estive sempre de pé no ônibus, me defendendo
ao largo do corrimão de tantos rumos,
alianças e ponteiros com paradas diferentes.
E o brado irritante do cobrador ainda a exigir
um passo à frente.

O fato de não ter sido é mais trabalhoso
do que a fama. Prossegui a imaginar,
sondando o que poderia ter vivido.
Disperso, anônimo, no comício do mar
e nas trevas.

Diminuindo o risco, reduzimos a possibilidade
de nos libertar. O medo, o medo, o medo
é o que nos faz escolher.

Descobre-se um amor
na iminência de perdê-lo.

fabricio carpinejar - terceira sede

sábado, 31 de janeiro de 2009

Cada canção
é um remanso
do amor.

Cada estrela
um remanso
do tempo.
Um nó
do tempo.

E cada suspiro
um remanso
do grito.


federico garcía lorca (1921)

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Tinha a imaginação muito fértil quando criança. Às vezes imaginava coisas estranhíssimas. Quando sabia de algum acidente de trem, no trem que ia de Aurora para Fortaleza, ficava imaginando trem virado, aquela coisa enorme tombada. Quando as pessoas contavam um acidente de trem, estava sempre muito atento. Então um dia, alguém falou que, num acidente de trem, alguém cortou a cabeça. Passei dias imaginando alguém descendo na estação sem a cabeça e andando pela cidade. Não era um pensamento que me assustava, não, ao contrário. A pessoa sem cabeça se vestia como os outros, com um terno branco, e andava como os outros normalmente. Descia do trem e andava pela cidade, só que sem cabeça.

O trem me fascinava porque era um espaço que se movimentava. As pessoas não ficavam tão acomodadas como ficam no ônibus, presas na poltrona. No trem, dava para andar, passava gente vendendo coisas, conversando e coisa e tal. O mais fascinante era poder ir ao vagão-restaurante comer alguma coisa. Como não tinha dinheiro, só ia ver. E era fascinante ver as pessoas comendo naquele lugar. Era tanta poeira ao longo da estrada, que as pessoas usavam, como indumentária na hora de comer, uma toalha no pescoço. Não era nada luxuoso. Os pratos servidos eram arroz, feijão, bife. Mas aquilo me fascinava. As garrafas de cerveja, tremendo ao balanço do trem, me fascinavam mais ainda.

no calor da tela - pedro jorge de castro - cineasta

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Eu tenho um ermo enorme dentro do olho. Por motivo do ermo não fui um menino peralta. Agora tenho saudade do que não fui. Acho que o que faço agora é o que não pude fazer na minha infância. Faço outro tipo de peraltagem. Quando era criança eu deveria pular muro do vizinho para catar goiaba. Mas não havia vizinho. Em vez de peraltagem eu fazia solidão. Brincava de fingir que pedra era lagarto. Que lata era navio. Que sabugo era um serzinho mal resolvido e igual a um filhote de gafanhoto.

Cresci brincando no chão, entre formigas. De uma infância livre e sem comparamentos. Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação. Porque se a gente fala a partir de ser criança, a gente faz comunhão: de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um pássaro e sua árvore. Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão comungante e oblíqua das coisas. Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina. É um paradoxo que ajuda a poesia e que eu falo sem pudor. Eu tenho que essa visão oblíqua vem de eu ter sido criança em algum lugar perdido onde havia transfusão da natureza e comunhão com ela. Era o menino e os bichinhos. Era o menino e o sol. O menino e o rio. Era o menino e as árvores.


manoel de barros – memórias inventadas – a infância