sexta-feira, 6 de maio de 2011

Num restaurante do centro, Haydée Lange e eu conversávamos. A mesa estava posta e restavam fragmentos de pão e possivelmente dois cálices; é verossímil supor que havíamos jantado juntos. Discutíamos, acho, um filme de King Vidor. Nos cálices devia haver um pouco de vinho. Senti, com um início de tédio, que estava repetindo coisas já ditas e que ela sabia disso e me respondia de forma mecânica. De repente me lembrei que Haydée Lange morrera havia muito tempo. Era um fantasma e não sabia. Não senti medo; senti que era impossível e talvez descortês revelar-lhe que era um fantasma, um belo fantasma.

O sonho se ramificou em outro sonho antes que eu acordasse.


jorge luis borges - atlas

sábado, 30 de abril de 2011

O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto.

A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego.

O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranquila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles... Um homem cego mascava chicles.

Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar – o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mastigava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir – como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o.


clarice lispector - laços de família

quarta-feira, 30 de março de 2011

Me lembro que estava num hotel em Buenos Aires, vendo na tevê um drama de boxe. Desliguei o som, só ficou a imagem do lutador já cansado (tantas lutas) e reagindo. Resistindo. Acertava às vezes, mas tanto soco em vão, o adversário tão ágil, fugidio, desviando a cara. E ele ali, investindo. Insistindo. Mas o que mantinha o lutador de pé? Duas vezes beijou a lona. Poeira, suor e sangue. Voltava a reagir, alguém sugeriu que lhe atirassem a toalha, é melhor desistir, chega! Mas ele ia buscar forças sabe Deus onde e se levantava de novo, o fervor acendendo a fresta do olho quase encoberto pela pálpebra inchada. Fiquei vendo a imagem do lutador solitário- mas quem podia ajudá-lo? Era a coragem que o sustentava? A vaidade? Simples ambição de riqueza, aplauso? Tudo isso já tinha sido mas agora não era mais, agora era a vocaç ão. A paixão. E de repente me emocionei: na imagem do lutador de boxe, vi a imagem do escritor no corpo a corpo com a palavra. Se o pensamento verte sangue, desse sangue estão impregnados os livros.

lygia fagundes telles