quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxaguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer.

graciliano ramos

sábado, 6 de dezembro de 2008

quem gosta do que eu gosto pode ir, sem medo:

http://www.cronopios.com.br/

quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

A dança das ruas

Sinto falta de caminhar na calçada, sentir a vibrante fluidez da troca de olhares, sinto falta de reconhecer o outro, encontrar um amigo que não via há muito tempo, parar para ver um cão vadio, um escritor que passa de chinelas, uma amiga de escola, que agora tem um neto, ver rostos que nunca vi, ou rostos que vi e não me recordo exatamente onde, mas de que nunca me esqueci, rostos que me trazem mensagens novas sobre o ser humano, há um prazer incomparável no encostar ao balcão do botequim para tomar um café, comprar maçã no quitandeiro, cumprimentar o jornaleiro todos os dias com uma sensação de perenidade, comprar queijo e vinho no mercado da esquina, sair da padaria e sentir nos braços o calor do pão, reclamar do carro estacionado na calçada, quanto tudo é pretexto para se começar um dedo de prosa na rua, rua, que um dia foi o retrato da vida moderna e hoje é um resto abandonado, a vida se passa nas vias expressas onde não há pessoas, mas carros e ônibus barulhentos onde todo mundo perde o rosto, se passa nos refúgios de compras onde imperam a compulsão e o tédio, sinto falta da rua do sonho, do erotismo que há no apenas existir, no simplesmente passar, sinto falta do deixar-me ir, como é a vida, de pisar na profundidade e na beleza da sujeira urbana, na bosta do cachorro, olhar na beleza do mendigo e da criança que vende chiclete, do flanelinha, dos desesperadamente pobres e dos cronicamente desempregados, nas ruas repletas de crime, violência, ódio penetrante e medo, sinto falta do prazer de deslizar entre os demônios da propaganda e as moléstias do sucesso, falta de ver os velhos que caminham e dar uma flertada apenas para despertar suas fantasias talvez esquecidas num porão da memória, daquele estado de perpétuo movimento, da sensação de perigo e da iminência do amor, de entrar e sair nas livrarias, de reconhecer as minúcias do meu bairro, sentir nas esquinas o vento que levanta minha saia, olhar os vestidos nas vitrines e ter por um instante o corpo perfeito do manequim de resina, caminhar na rua, furar o sinal de pedestres, caminhar, banhada pelas luzes cambiantes, pelo redondilhado de sol sob as amendoeiras e entregar-me à adoração do crepúsculo, em caminhos simples que levam apenas de uma a outra calçada.

ana miranda - caros amigos - dez/2000

quarta-feira, 26 de novembro de 2008

a respeito de um concerto do quarteto de Thelonius Monk em Genebra, março de 1966

Agora as luzes se apagam, nós nos olhamos ainda com o leve tremor de despedida que sempre nos invade ao começar um concerto (atravessaremos um rio, será outro tempo, o óbolo está pronto) e o baixista já levanta seu instrumento e o sonda, brevemente a vassourinha percorre o ar do timbal como um calafrio e lá do fundo, dando uma volta totalmente desnecessária, um urso com um gorro entre turco e solidéu se encaminha para o piano pousando um pé na frente do outro com um cuidado que evoca minas abandonadas ou aqueles cultivos de flores dos déspotas sassânidas em que cada flor pisada significava uma lenta morte do jardineiro. Quando Thelonius se senta ao piano toda a sala se senta com ele e produz um murmúrio coletivo do tamanho exato do alívio, porque o percurso tangencial de Thelonius no palco tem algo de arriscada cabotagem fenícia com prováveis encalhamentos nos recifes e, quando a nave de escuro mel e barbudo capitão chega ao porto, é recebida no cais maçônico do Victoria Hall com um suspiro de asas apaziguadas, de quebra-mares corretos. Então é Pannonica, o Blue Monk, três sombras que parecem espigas rodeiam o urso investigando as colméias do teclado, as toscas garras benevolentes indo e vindo entre abelhas desconcertadas e hexágonos de som, passou somente um minuto e já estamos na noite fora do tempo, a noite primitiva e delicada de Thelonius Monk.

julio cortázar - a volta ao dia em 80 mundos

sábado, 15 de novembro de 2008

A dúvida de Sancho Pança

serão as donzelas
(dulcinéias e quejandas)
mais gentis
e mais formosas
quando impossíveis?


adalberto muller
O todo sem a parte não é todo,
A parte sem o todo não é parte,
Mas se a parte o faz todo, sendo parte,
Não se diga que é parte, sendo todo.


gregório de matos

quinta-feira, 13 de novembro de 2008

vale a pena ouvir o que steve jobs tem a dizer

http://video.google.com/googleplayer.swf?docid=-3827595897016378253&hl

sábado, 11 de outubro de 2008

Ser poeta não é uma maneira de escrever. É uma maneira de ser. O leitor de poesia é também um poeta.

mario quintana

sábado, 20 de setembro de 2008

Por favor, não me analise
Não fique procurando cada ponto fraco meu.
Se ninguém resiste a uma análise profunda,
Quanto mais eu...
Ciumento, exigente, inseguro, carente
Todo cheio de marcas que a vida deixou
Vejo em cada grito de exigência
Um pedido de carência, um pedido de amor.

Amor é síntese
É uma integração de dados
Não há que tirar nem pôr.
Não me corte em fatias
Ninguém consegue abraçar um pedaço
Me envolva todo em seus braços
E eu serei o perfeito amor.

mário quintana

sexta-feira, 5 de setembro de 2008

Comecei a perceber a miséria humana nas primeiras viagens de Fortaleza para Itaiçaba, de ônibus e de caminhão. Numa das vezes que parei na estrada, em algum lugar, para tomar água e comer uma broa ou algo assim, havia um homem e uma mulher sentados no chão assim do lado, abandonados. Uns vinte dias depois, quando voltava para Fortaleza, o carro parou no mesmo lugar e o homem e a mulher estavam lá no mesmo lugar, no mesmo chão, com a mesma atitude, do mesmo jeito. Quer dizer, em vez de essas pessoas consumirem a vida, elas estavam sendo consumidas pela vida. Disso nunca esquecerei. Esse quadro de miséria que não se modificava me chamou demais a atenção.

o calor da tela - pedro jorge de castro – cineasta

segunda-feira, 1 de setembro de 2008

onde o sentido está contido?
comigo? contigo?
onde andará o sentido?
sentado à beira do abismo?
abismado com tanto cinismo?
onde andará o sentido?
sentado no cais a ver navios?
no meio do mar à deriva?
onde o sentido se esquiva?

chacal

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

Poesia não é uma coisa que se invente. Ela está aí, imanente, no céu, no ar, no fogo, no mar, nas montanhas, nos homens, nas mulheres, nas crianças, nos animais domésticos, nas feras, nas águas e nos sabiás, nas sardinhas e nas baleias, nas frutas, nas pedras, nos minérios, na luta pela liberdade, na vida e na morte, em tudo o que existe e por existir... Não é poesia que falta, mas poetas.

vinicius de moraes

sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Quando olhar para trás, haverá coisas de que vai se arrepender.

Você tomou a decisão errada.

Errado. Você tomou a decisão certa.

A vida é feita de decisões.


1. É melhor ter um carro prático ou um carro veloz?
2. Devo ir para a universidade ou arranjar um emprego?
3. Prefiro tomar vinho, cerveja ou água?

Qualquer que seja a sua decisão, é a única que você poderia tomar. Caso contrário, você tomaria uma decisão diferente.

Tudo o que fazemos são escolhas. Então, do que se arrepender? Você é a pessoa que escolheu ser.


tudo o que você pensa pense ao contrário - paul arden

quarta-feira, 20 de agosto de 2008

A vida é assim: esquenta e esfria, aperta e daí afrouxa, sossega e depois desinquieta.
O que ela quer da gente é coragem.

guimarães rosa

sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Como sempre, depois do jantar todo mundo saiu para a caminhada habitual nos trilhos do trem. Fazer o footing, como os adultos diziam. Era parte do ritual das férias. O casarão da sede da fazenda Visconde, pertencente à família da minha mãe, fica a 100 metros de uma estaçãozinha da Mogiana com o mesmo nome, construída justamente para escoar a produção de café da fazenda. Em todas as férias, enchíamos a casa de tios, primos ou amigos da família para temporadas de duas semanas. Nestas caminhadas noturnas pelos trilhos, íamos até um bambuzal onde havia uma mina d’água, na beira da ferrovia. Eu tinha então uns 8 ou 9 anos.

Naquela noite (de 1963 ou 64), deixei o grupo avançar e fui ficando para trás ouvindo as conversas e a cantoria se afastando aos poucos. Quando as risadas tornaram-se quase inaudíveis, deitei num dormente e apoiei a cabeça no trilho, disposto a enfrentar meu medo. Olhei então para o magnífico céu de Brodosqui, tentando medir a distância entre as estrelas, tentando entender a escala daquilo e sentir onde eu me encaixava.

Desde os 7 anos eu tinha esse hábito. Ao deitar antes de dormir, olhando o teto escuro do meu quarto, me projetava no tempo imaginando onde iria acabar minha vida, procurando entender como seria estar morto, como seria o não-ser. O pensamento nunca passava de um ponto, no qual eu vislumbrava um grande vazio que parecia a porta do Nada. Tomava sempre um susto com o que sentia. Era um frio, meu coração disparava e meu pensamento era desviado para outro lugar, como se um dispositivo automático ativasse um reflexo para me tirar daquele estado assustador. Era apavorante.

Detestava a sensação, mas não conseguia evitar e sempre voltava para aquela situação. Era o mesmo tipo de atração ou vertigem que sentimos quando estamos à beira de um precipício. Houve um período em que comecei a dormir com alguma luz acesa para evitar a tentação de pensar na minha própria morte. Olhar para o céu à noite sempre foi um gatilho infalível para me levar à beira do abismo, por isso eu evitava fazê-lo. Mas naquela noite eu resolvi enfrentar.

Deitado ali, olhei para o céu, disposto a não me desviar. Queria pensar aquele pensamento até o fim. Fui assolado por um pavor que nunca mais esqueci. Deitado ali num dormente, diante daquela imensidão, tive a noção precisa da minha insignificância. Tomei uma espécie de choque gelado, foi tão terrível que não consegui nem chorar. Corri para junto do bando e prometi a mim mesmo nunca mais fazer aquilo. Nunca esqueci aquela experiência que foi um dos momentos mais marcantes da minha vida. E foi tão simples: um moleque deitado no trilho, olhando para o céu.

Aos 14 anos, eu tinha a certeza absoluta de que teria uma morte prematura e não emplacaria os 30. Conseguia aceitar bem este “destino” e, inclusive, avisava a todos “o que iria me ocorrer”. Minha mãe ficava brava cada vez que eu tocava nesse assunto, mas eu sabia que seria assim. Contava meus anos ao contrário: quantos anos faltavam e não quantos já haviam passado. Só que errei. Passei dos 30. Mesmo assim a morte continua sendo o grande tema da minha vida. Penso nela todos os dias, várias vezes por dia, aliás. Só que agora a contagem regressiva termina lá pelos 100 (conto com o desenvolvimento da ciência) e não mais nos 30.

Como alguns palestinos, todos nós carregamos a bomba que vai nos explodir a qualquer momento. Muita gente consegue viver como se ela não estivesse ativada. Eu não consigo. Escuto o tiquetaque da minha bomba o dia todo. Compreendo perfeitamente o pavor do Capitão Gancho, ao escutar o tiquetaque do seu próprio tempo passando, vindo do despertador na barriga do crocodilo.

Aquela experiência do trilho parece que alterou minha perspectiva frente à vida para sempre. Me sinto às vezes como um extraterrestre ou como um historiador. Alguém que, muitas vezes, apenas observa a vida de longe, sem estar envolvido apaixonadamente no dia-a-dia. Mas estar consciente do próprio fim a cada instante não é uma atitude de todo mórbida ou depressiva, como se possa imaginar. Pelo contrário. Ter consciência do meu próprio limite e da minha absoluta irrelevância ante a grandiosidade do todo me torna mais tolerante, quero crer.


biografia prematura - fernando meirelles - cineasta

quarta-feira, 6 de agosto de 2008

eu queria querer-te e amar o amor
construir-nos dulcíssima prisão
e encontrar a mais justa adequação
tudo métrica e rima e nunca dor
mas a vida é real e de viés
e vê só que cilada o amor me armou
eu te quero e não queres como sou
não te quero e não queres como és
ah! bruta flor do querer
ah! bruta flor, bruta flor


o quereres - caetano veloso

quinta-feira, 31 de julho de 2008

para ouvir bem cedo olhando do alto antes da cidade acordar... de manhã de tarde de noite antes de sair de casa... depois de chegar em casa... a qualquer hora do dia em qualquer lugar totalmente cool
  • time after time com sarah menescal
  • born to be blue com chet baker
  • 's wonderful com diana krall

domingo, 27 de julho de 2008

Somos onze irmãos, em escadinha. Foi bacana ter muitos irmãos. Ajudou a entender que cada pessoa é uma pessoa. Isso parece óbvio, mas não é. Mesmo sendo irmão, não dá pra tratar todo mundo igual, e nem esperar tudo igual de todos. Ao mesmo tempo, tanta gente em uma casa só nos fez socializar mais as coisas. Por exemplo, sapato. Sapato era uma socialização geral, um ia crescendo e passando para o outro. Com roupa também era assim. Como não éramos poucos, desenvolvíamos muito o sentido da economia e da escassez. Só se jogava camisa fora lá em casa quando estava muito rasgada, completamente imprestável. Mas, antes de jogá-la fora, arrancavam-se os botões para aproveitá-los nas outras camisas.

Nós mudamos de Aurora para Fortaleza num caminhão. A família inteira na boléia, e as coisas, os teréns atrás, na carroceria. Quando chegamos naquela cidade grande, meu pai saiu comigo e com meu irmão Marçal para ver vitrine. Estava muito calor, a gente pediu para beber água, e ele, que tinha muita necessidade de controlar dinheiro, entrou num restaurante e voltou com um copo cheio de gelo, que era coisa que a gente não conhecia lá em Aurora. Trouxe o copo cheio de gelo, e a gente ficou chupando gelo na calçada, e vendo as vitrines.

Meu pai era mais racional. Mas minha mãe era emoção o tempo todo. Era como se ele fosse o intelecto, e ela a emoção. Às vezes ela chegava, abraçava a gente e, sem que a gente soubesse porque, saía chorando. Herdei um pouco isso dela, às vezes choro assim, do nada. Não adiantava a gente perguntar por que chorava. Sempre dizia que não era nada, que não tinha explicação. Muito tempo depois, quando, depois de morar muito tempo na Itália, passei uns dias em Fortaleza, relembrando coisas do passado, repeti a pergunta: Venha cá, por que, quando a gente era pequeno, a senhora começava a chorar, assim do nada? Ela então disse: Não era por nada não, era só porque eu nunca pensei que fosse ser tão feliz.

A relação de meu pai e minha mãe era muito forte. Muito profunda. Percebi isso desde pequeno. Às vezes ia com meu pai esperar a minha mãe, e lembro de ele dizer para mim: Lá vem sua mãe, toda linda e faceira. Era legal ouvir o pai dizer isso da mãe. Isso, essa maneira como meu pai via minha mãe, me ajudou a perceber que as pessoas precisam saber apreciar e enxergar a beleza fora de si.

o calor da tela - pedro jorge de castro - cineasta

sexta-feira, 11 de julho de 2008

Não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta adentro
Dizendo-me, Aqui estou!

Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida toda é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos.

Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele fez, para eu o ver,
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.


trechos do poema o guardador de rebanhos - fernando pessoa/alberto caeiro

terça-feira, 1 de julho de 2008

Se as coisas são inatingíveis... ora!
não é motivo para não querê-las.
Que tristes os caminhos, se não fora
a mágica presença das estrelas!

mário quintana - das utopias
Eu gosto dos que têm fome
dos que morrem de vontade
dos que secam de desejo
dos que ardem...


adriana calcanhoto - senhas

domingo, 22 de junho de 2008

RECORDAR É INVENTAR
Fabrício Carpinejar

Eu não fiz pesquisa de mercado para começar na poesia. Não fiz teste vocacional, muito menos perguntei aos meus pais o que achavam da idéia. A poesia é a necessidade de ouvir. Aprendi a falar aos 2 anos. Aprender a ouvir, ainda não tenho certeza. Talvez na velhice, mas aí não estarei ouvindo mesmo. Precisarei que as pessoas se aproximem bem perto de meus ouvidos como quem conta segredos.

O que me levou à poesia foi a insatisfaçào orgânica com a própria satisfação. A gente procura o amor pelo excesso. Não queremos concluir nada: um livro, uma paixão, um filme, uma música. Queremos o desejo de estar sendo. Eu sou poeta pela absoluta incompetência de ser outras profissões. O poeta é todos quando ninguém.

Quando pequeno, meu pai me levava para a sinfonia das árvores em frente de casa, em noites cheias de vento. Ele levantava a cabeça para ouvir melhor. Ele levantava a cabeça ao escrever, não baixava como o normal. Enquanto ele anotava, eu ficava intrigado: será que meu pai está plagiando as árvores?

Minha mãe não era diferente. Um dia eu a vi escrevendo no avental. Não achava folhas e assinou um longo poema no avental. Sabe o que significa a um menino chegando com bola debaixo do braço, fedido de mato, enxergar a mãe redigindo em um pano? Tudo.

A escrita é linha de costura. Mas uma costura por dentro. Ninguém enxerga os pontos. O sangue não cicatriza, porque ele é a própria ferida andando de um lado para o outro, aumentando a insegurança do corpo. Eu apenas sei escrever na insegurança do corpo.

Já adolescente, uma cigana me olhou, pegou minha mão como quem descasca uma fruta e avisou: "queres crescer, menino, precisas deixar espaço vazio aí dentro". Juro que me assustei. Depois fui descobrir que escrever é se esvaziar. O autor que desaparece no leitor realmente escreve. O autor não existe. Quem existe é seu desejo.

Pensei que o alfabeto fosse o mundo. Não, o alfabeto é a procura do mundo. A poesia é a procura do alfabeto. Quem diz que encontrou, somente desistiu primeiro.

Escrever não é acariciar com as mãos, é acariciar com os pés. Tudo o que se vive não se repete. Nem na imaginação se repete. Recordar é inventar.

carpinejar é poeta e jornalista
( revista poesia sempre no. 18, set/04 - publicação da biblioteca nacional)

quarta-feira, 18 de junho de 2008

Para sofrer o menos possível, é preciso aceitar o que acontece e encontrar um equilíbrio novo. A vida é uma história de equilibrismo, que pode ser mais ou menos longa em função da sorte e do talento de cada um. Só não anda na corda bamba quem já morreu.

betty milan

segunda-feira, 2 de junho de 2008

A pé e de coração leve
eu enveredo pela estrada aberta,
saudável, livre, o mundo à minha frente,
à minha frente o longo atalho pardo
levando-me aonde eu queira.

Daqui em diante não peço mais boa sorte,
boa sorte sou eu.
Daqui em diante não lamento mais,
não transfiro, não careço de nada;
nada de queixas atrás das portas,
de bibliotecas, de tristonhas críticas;
forte e contente vou eu
pela estrada aberta.


walt whittman

sexta-feira, 30 de maio de 2008

PEDAÇOS DE MULHER
Martha Medeiros

Pedro Almodóvar, cineasta espanhol, certa vez justificou sua admiração pelas mulheres declarando que elas eram feitas de muito mais pedaços do que os homens. Li essa declaração na resenha que a revista Veja fez a respeito do filme Tudo sobre minha mãe, que merece cada elogio que vem recebendo mundo afora.

Todo ser humano é um quebra-cabeça composto por muitas peças, e concordo com Almodóvar: nós, do sexo feminino, fazemos parte daqueles jogos mais complicados, difíceis de montar. Quantos pedaços formam uma mulher? Tantos que ela vive inacabada.

Nossos pedaços custam a se encaixar. O epicentro do quebra-cabeça costuma ser a maternidade, um pedaço grande que precisa combinar com o pedaço da luxúria, com o pedaço da solidão e também com aquela partezinha da preguiça, que ninguém avisou que fazia parte do jogo. Há peças variadas que, vistas separadamente, não têm nada a ver uma com a outra, mas juntas fazem shazam. O pedaço da submissão que precisa encaixar com o pedaço da rebeldia, o pedaço da juventude que tem que encaixar com o pedaço da menopausa, um pedaço desgarrado que tem que encaixar com o imenso pedaço da nossa árvore genealógica, e vários outros pedaços aparentemente sem combinação: nossa parte homem, nossa parte criança, nossa parte louca, nossa parte santa, nossa parte lúcida, nossa parte conivente, nossa parte viciada, e mais aquelas desgastadas pelo uso, e umas que se perderam, e outras tão pequenas que ficaram invisíveis. Como encaixar o que não se revela nem pra nós mesmas?

Almodóvar filma as mulheres como se elas fossem pizzas de vários sabores. Mezzo freiras, mezzo HIV positivas. Mezzo doces, mezzo apimentadas. Mezzo dramáticas, mezzo divertidas. Almodóvar nunca fecha o quebra-cabeça, apenas esparrama na tela os vários pedaços que, unidos, nos transformariam num ser único, e que, uma vez pronto, já não empolgaria ninguém. Daí a importância de haver sempre uma peça faltando, pois é isso que nos mantém acordados, assim no cinema como na vida.

Outubro de 1999


non stop - crônicas do cotidiano

quinta-feira, 29 de maio de 2008

Singularidades, vejo-as de três espécies. Seguramente, as pessoas singulares, insubstituíveis. Nossos papéis sociais poderão substituir-nos uns pelos outros, mas não poderemos substituir uns aos outros em nossa qualidade absolutamente singular. Cada rosto é único.

Mas há outras singularidades. Há as obras de arte. Cada obra de arte é a solução de um problema. Cada estilo é a solução singular trazida a um problema singular: como combinar a forma, a luz, a cor? Cada pintor resolve esse problema à sua maneira.

E depois, a singularidade existe também na natureza. Uma paisagem não é um recorte do espaço, simplesmente; é uma totalidade única em seu gênero, na sua cor, ou em outra coisa qualquer. Então, aí, penso em pintores que pegaram, por exemplo, o mesmo feixe de feno em plena luz ou nas trevas. Monet, as ninfas... essas variações ínfimas da mesma coisa, de algum modo abstrata, que seriam os nenúfares; mas é cada vez único, singular.

paul ricœur – filósofo francês
(a respeito da frase de espinosa: quanto mais compreendemos as coisas singulares, mais compreendemos deus)

quarta-feira, 28 de maio de 2008

Deve-se aprender a viver por toda a vida e, por mais que tu talvez te espantes, a vida toda é um aprender a morrer.

sêneca - sobre a brevidade da vida

segunda-feira, 26 de maio de 2008

Neste dia perfeito em que tudo amadurece e não é somente a fruta que se amorena, um raio de sol caiu sobre a minha vida: olhei para trás, olhei para a frente, nunca tinha visto tantas e tão boas coisas de uma só vez. Não foi em vão que enterrei hoje o meu quadragésimo quarto ano: eu podia enterrá-lo – o que nele era vida está salvo, é imortal.

nietzsche – ecce homo

sexta-feira, 23 de maio de 2008

Penso que a poesia é algo tão íntimo, algo tão essencial, que não pode ser definido sem se diluir. Seria como tentar definir a cor amarela, o amor, a queda das folhas no outono... Eu não sei como podemos definir as coisas essenciais. Penso que a única definição possível seria a de Platão, precisamente porque não é uma definição, senão porque é um fato poético. Quando ele fala da poesia ele diz: "Essa coisa leve, alada e sagrada". Isso, eu acredito, pode definir, de certa forma, a poesia, já que não a define de um modo rígido, senão que oferece à imaginação essa imagem de um anjo ou um de pássaro.

jorge luis borges - conversaciones com roberto alifano

sábado, 3 de maio de 2008

Sou uma lágrima do sol.
Sou uma colina
pela qual os poetas ascendem.
Inventei o alfabeto
depois de observar o vôo das garças
que faziam letras com as pernas.
Sou um lago na planície.
Uma palavra numa árvore.
Sou uma montanha de poesia.
Uma blitz no inarticulado.
Sonhei
que todos os meus dentes caíram
mas a minha língua sobreviveu
para contar a história.
Porque sou um silêncio poético.
Sou um bando de canções.


lawrence ferlinghetti - trecho do poema autobiografia
(herdeiro literário de walt whitman e t.s. eliot,
lawrence ferlinghetti é o pai de todos os poetas beats)

domingo, 6 de abril de 2008

A teoria é que todo mundo tem 100 pontos. 100 é a soma dos pontos das características que você tem. Por exemplo: 8 em alegria, 7 em disciplina, 10 em inteligência e assim por diante.

Se você tem menos pontos no item experiência, é porque deve ter mais pontos no item capacidade de se surpreender. Se tem menos no quesito falar, com certeza vai ter mais no quesito ouvir. E por aí vai.

É isso que faz a sua personalidade ser única e especial. E é isso que faz todas as pessoas ter a sua beleza própria.

Segundo os direitos humanos, todo mundo é igual. Só que, na verdade, todo mundo é também muito diferente.

Mas todo mundo tem 100 pontos.


(texto de uma propaganda do Boticário publicada na revista Veja)

quarta-feira, 12 de março de 2008

Nós, que vivemos nos campos de concentração, lembramo-nos dos homens que passavam pelas tendas confortando os outros, dando-lhes seu último pedaço de pão. Podem ter sido poucos, mas são prova suficiente de que se pode tirar tudo de um homem, menos uma coisa: a última de suas liberdades - a de escolher seu comportamento em quaisquer circunstâncias, a de escolher seu próprio caminho.
(viktor e frankl - canja de galinha para a alma)

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

OS OMBROS SUPORTAM O MUNDO
Carlos Drummond de Andrade

Chega um tempo em que não se diz mais: meu deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor restou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Coragem não é a ausência do medo. É a capacidade de superá-lo, quando ele existe, por uma vontade mais forte e mais generosa. Já não é (ou já não é apenas) fisiologia, é força de alma, diante do perigo. Já não é uma paixão, é uma virtude, e a condição de todas. Já não é a coragem dos durões, é a coragem dos doces, e dos heróis.

A coragem é o contrário da covardia, decerto, mas também da preguiça ou da frouxidão. É a mesma coragem, nos dois casos? Sem dúvida não. O perigo não é o trabalho; o medo não é o cansaço. Mas é preciso superar, nos dois casos, o impulso primeiro ou animal, que preferiria o repouso, o prazer ou a fuga.

A coragem não é ausência de medo. É a capacidade de enfrentá-lo, de dominá-lo, de superá-lo, o que supõe que ela existe ou deveria existir.

Não é um saber, mas uma decisão. Não é uma opinião, mas um ato. É por isso que a razão aqui não basta. Toda razão é universal; toda coragem, singular. Toda razão é anônima; toda coragem, pessoal. É por isso, aliás, que é preciso coragem para pensar, às vezes, como é preciso para sofrer ou lutar, porque ninguém pode pensar em nosso lugar - nem sofrer em nosso lugar, nem lutar em nosso lugar -, e porque a razão não basta, porque a verdade não basta, porque é necessário ainda superar em si tudo o que estremece ou resiste, tudo o que preferiria uma ilusão tranquilizadora ou uma mentira confortável. Daí o que chamamos de coragem intelectual, que é a recusa, no pensamento, de ceder ao medo, a recusa de se submeter a outra coisa que não a verdade, à qual nada assusta e ainda que ela fosse assustadora.

É também o que chamamos lucidez, que é a coragem do verdadeiro, mas a que nenhuma verdade basta. Toda verdade é eterna; a coragem só tem sentido na finitude e na temporalidade - na duração. E é por isso que precisamos de coragem. Coragem para durar e aguentar, coragem para viver e para morrer, coragem para suportar, para combater, para enfrentar, para resistir, para perseverar.

A coragem só continua como uma duração sempre incoativa do esforço, como um começo sempre recomeçado, apesar do cansaço, apesar do medo. "É preciso, pois, sair do medo pela coragem", dizia Alain. O medo paralisa, e toda ação, mesmo de fuga, furta-se um pouco a ele. A coragem triunfa sobre o medo, pelo menos tenta triunfar, e já é corajoso tentar. Qual virtude, de outro modo? Qual vida? Qual felicidade? Um homem de alma forte, lemos em Spinoza, "esforça-se por agir bem e manter-se alegre"; confrontado com os obstáculos, que são muitos, esse esforço é a própria coragem.

Como toda virtude, a coragem só existe no presente. Querer dar amanhã ou outro dia não é ser generoso. Querer ser corajoso na semana que vem ou daqui a dez anos não é coragem. Ela sempre está ligada à vontade, muito mais do que à esperança. Só esperamos o que não depende de nós; só queremos o que depende de nós.


A esperança, de fato, fortalece a coragem. Mas é necessário ser corajoso, sobretudo, quando falta esperança. O verdadeiro herói será aquele que for capaz de enfrentar não apenas o risco, que risco sempre há, mas, se preciso, a certeza da morte ou, mesmo, pode acontecer, da derrota final. É a coragem dos vencidos, que não é menor, quando estes a têm, nem menos meritória do que a dos vencedores. Que podiam esperar os insurretos de Varsóvia? Nada para eles mesmos, pelo menos, e por isso mesmo sua coragem foi ainda mais patente e heróica. Por que combater então? Porque é preciso. Porque o contrário seria indigno. Ou pela beleza do gesto.


(andré comte-sponville - pequeno tratado das grandes virtudes)

domingo, 3 de fevereiro de 2008

A alma é o cenário onde os pensamentos caminham. Os pensamentos que não caminham ficam doentes, à semelhança do corpo que não caminha.

Quando caminho, eu não caminho. Percorre-se um caminho para se chegar a algum lugar. Mas quando eu caminho, eu não quero chegar a lugar algum. Quero simplesmente estar indo. Cada ponto do caminho é um ponto de chegada. Nietzsche se ria dos turistas que subiam as montanhas, suando e bufando: o que eles queriam era chegar ao alto da montanha. Cegos pela estupidez, não viam que cada lugar da caminhada estava cheio de beleza. A felicidade não se encontra ao final. Dito pelo Guimarães Rosa: "a coisa não está nem na partida nem na chegada; está é na travessia."

(rubem alves - cenas da vida)
... para ouvir: but not for me com chet baker (com natalie merchant, iguaria fina para degustar sorrindo por dentro)
Passamos à poesia; passamos à vida. E a vida, tenho certeza, é feita de poesia. A poesia não é alheia - a poesia, como veremos, está logo ali, à espreita. Pode saltar sobre nós a qualquer instante.
(jorge luis borges - esse ofício do verso)

sábado, 2 de fevereiro de 2008

PEDRINHAS NA JANELA
Mário Benedetti (poeta uruguaio)

De vez em quando a alegria
atira pedrinhas em minha janela.
Quer avisar-me que está lá esperando.
Mas hoje me sinto calmo
quase, diria, equânime.
Vou guardar a angústia em seu esconderijo
e deitar-me de cara ao teto,
que é uma posição galharda e cômoda
para filtrar notícias e acreditar nelas.

Quem sabe onde estarão minhas próximas pegadas,
ou quando minha história vai ser contada?
Quem sabe que conselhos ainda vou inventar,
e que atalho acharei para não segui-los?

Está certo, não brincarei de despejo,
não disfarçarei a recordação com esquecimentos.
Muito fica por dizer e calar,
e também ficam uvas para encher a boca.

Está bem, me dou por convencido.
Que a alegria não atire mais pedrinhas.
Abrirei a janela.
Abrirei a janela.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

... coisas para ver, ouvir, ler, falar, gostar, amar, desamar, saber, alegrar, pensar, desgostar, estranhar, sorrir, copiar, ignorar, suspirar... as coisas... poucas... muitas... ah, as coisas...