quarta-feira, 27 de fevereiro de 2008

OS OMBROS SUPORTAM O MUNDO
Carlos Drummond de Andrade

Chega um tempo em que não se diz mais: meu deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor restou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teus ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Coragem não é a ausência do medo. É a capacidade de superá-lo, quando ele existe, por uma vontade mais forte e mais generosa. Já não é (ou já não é apenas) fisiologia, é força de alma, diante do perigo. Já não é uma paixão, é uma virtude, e a condição de todas. Já não é a coragem dos durões, é a coragem dos doces, e dos heróis.

A coragem é o contrário da covardia, decerto, mas também da preguiça ou da frouxidão. É a mesma coragem, nos dois casos? Sem dúvida não. O perigo não é o trabalho; o medo não é o cansaço. Mas é preciso superar, nos dois casos, o impulso primeiro ou animal, que preferiria o repouso, o prazer ou a fuga.

A coragem não é ausência de medo. É a capacidade de enfrentá-lo, de dominá-lo, de superá-lo, o que supõe que ela existe ou deveria existir.

Não é um saber, mas uma decisão. Não é uma opinião, mas um ato. É por isso que a razão aqui não basta. Toda razão é universal; toda coragem, singular. Toda razão é anônima; toda coragem, pessoal. É por isso, aliás, que é preciso coragem para pensar, às vezes, como é preciso para sofrer ou lutar, porque ninguém pode pensar em nosso lugar - nem sofrer em nosso lugar, nem lutar em nosso lugar -, e porque a razão não basta, porque a verdade não basta, porque é necessário ainda superar em si tudo o que estremece ou resiste, tudo o que preferiria uma ilusão tranquilizadora ou uma mentira confortável. Daí o que chamamos de coragem intelectual, que é a recusa, no pensamento, de ceder ao medo, a recusa de se submeter a outra coisa que não a verdade, à qual nada assusta e ainda que ela fosse assustadora.

É também o que chamamos lucidez, que é a coragem do verdadeiro, mas a que nenhuma verdade basta. Toda verdade é eterna; a coragem só tem sentido na finitude e na temporalidade - na duração. E é por isso que precisamos de coragem. Coragem para durar e aguentar, coragem para viver e para morrer, coragem para suportar, para combater, para enfrentar, para resistir, para perseverar.

A coragem só continua como uma duração sempre incoativa do esforço, como um começo sempre recomeçado, apesar do cansaço, apesar do medo. "É preciso, pois, sair do medo pela coragem", dizia Alain. O medo paralisa, e toda ação, mesmo de fuga, furta-se um pouco a ele. A coragem triunfa sobre o medo, pelo menos tenta triunfar, e já é corajoso tentar. Qual virtude, de outro modo? Qual vida? Qual felicidade? Um homem de alma forte, lemos em Spinoza, "esforça-se por agir bem e manter-se alegre"; confrontado com os obstáculos, que são muitos, esse esforço é a própria coragem.

Como toda virtude, a coragem só existe no presente. Querer dar amanhã ou outro dia não é ser generoso. Querer ser corajoso na semana que vem ou daqui a dez anos não é coragem. Ela sempre está ligada à vontade, muito mais do que à esperança. Só esperamos o que não depende de nós; só queremos o que depende de nós.


A esperança, de fato, fortalece a coragem. Mas é necessário ser corajoso, sobretudo, quando falta esperança. O verdadeiro herói será aquele que for capaz de enfrentar não apenas o risco, que risco sempre há, mas, se preciso, a certeza da morte ou, mesmo, pode acontecer, da derrota final. É a coragem dos vencidos, que não é menor, quando estes a têm, nem menos meritória do que a dos vencedores. Que podiam esperar os insurretos de Varsóvia? Nada para eles mesmos, pelo menos, e por isso mesmo sua coragem foi ainda mais patente e heróica. Por que combater então? Porque é preciso. Porque o contrário seria indigno. Ou pela beleza do gesto.


(andré comte-sponville - pequeno tratado das grandes virtudes)

domingo, 3 de fevereiro de 2008

A alma é o cenário onde os pensamentos caminham. Os pensamentos que não caminham ficam doentes, à semelhança do corpo que não caminha.

Quando caminho, eu não caminho. Percorre-se um caminho para se chegar a algum lugar. Mas quando eu caminho, eu não quero chegar a lugar algum. Quero simplesmente estar indo. Cada ponto do caminho é um ponto de chegada. Nietzsche se ria dos turistas que subiam as montanhas, suando e bufando: o que eles queriam era chegar ao alto da montanha. Cegos pela estupidez, não viam que cada lugar da caminhada estava cheio de beleza. A felicidade não se encontra ao final. Dito pelo Guimarães Rosa: "a coisa não está nem na partida nem na chegada; está é na travessia."

(rubem alves - cenas da vida)
... para ouvir: but not for me com chet baker (com natalie merchant, iguaria fina para degustar sorrindo por dentro)
Passamos à poesia; passamos à vida. E a vida, tenho certeza, é feita de poesia. A poesia não é alheia - a poesia, como veremos, está logo ali, à espreita. Pode saltar sobre nós a qualquer instante.
(jorge luis borges - esse ofício do verso)

sábado, 2 de fevereiro de 2008

PEDRINHAS NA JANELA
Mário Benedetti (poeta uruguaio)

De vez em quando a alegria
atira pedrinhas em minha janela.
Quer avisar-me que está lá esperando.
Mas hoje me sinto calmo
quase, diria, equânime.
Vou guardar a angústia em seu esconderijo
e deitar-me de cara ao teto,
que é uma posição galharda e cômoda
para filtrar notícias e acreditar nelas.

Quem sabe onde estarão minhas próximas pegadas,
ou quando minha história vai ser contada?
Quem sabe que conselhos ainda vou inventar,
e que atalho acharei para não segui-los?

Está certo, não brincarei de despejo,
não disfarçarei a recordação com esquecimentos.
Muito fica por dizer e calar,
e também ficam uvas para encher a boca.

Está bem, me dou por convencido.
Que a alegria não atire mais pedrinhas.
Abrirei a janela.
Abrirei a janela.

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

... coisas para ver, ouvir, ler, falar, gostar, amar, desamar, saber, alegrar, pensar, desgostar, estranhar, sorrir, copiar, ignorar, suspirar... as coisas... poucas... muitas... ah, as coisas...