sábado, 31 de janeiro de 2009

Cada canção
é um remanso
do amor.

Cada estrela
um remanso
do tempo.
Um nó
do tempo.

E cada suspiro
um remanso
do grito.


federico garcía lorca (1921)

quarta-feira, 28 de janeiro de 2009

Tinha a imaginação muito fértil quando criança. Às vezes imaginava coisas estranhíssimas. Quando sabia de algum acidente de trem, no trem que ia de Aurora para Fortaleza, ficava imaginando trem virado, aquela coisa enorme tombada. Quando as pessoas contavam um acidente de trem, estava sempre muito atento. Então um dia, alguém falou que, num acidente de trem, alguém cortou a cabeça. Passei dias imaginando alguém descendo na estação sem a cabeça e andando pela cidade. Não era um pensamento que me assustava, não, ao contrário. A pessoa sem cabeça se vestia como os outros, com um terno branco, e andava como os outros normalmente. Descia do trem e andava pela cidade, só que sem cabeça.

O trem me fascinava porque era um espaço que se movimentava. As pessoas não ficavam tão acomodadas como ficam no ônibus, presas na poltrona. No trem, dava para andar, passava gente vendendo coisas, conversando e coisa e tal. O mais fascinante era poder ir ao vagão-restaurante comer alguma coisa. Como não tinha dinheiro, só ia ver. E era fascinante ver as pessoas comendo naquele lugar. Era tanta poeira ao longo da estrada, que as pessoas usavam, como indumentária na hora de comer, uma toalha no pescoço. Não era nada luxuoso. Os pratos servidos eram arroz, feijão, bife. Mas aquilo me fascinava. As garrafas de cerveja, tremendo ao balanço do trem, me fascinavam mais ainda.

no calor da tela - pedro jorge de castro - cineasta

quinta-feira, 15 de janeiro de 2009

Eu tenho um ermo enorme dentro do olho. Por motivo do ermo não fui um menino peralta. Agora tenho saudade do que não fui. Acho que o que faço agora é o que não pude fazer na minha infância. Faço outro tipo de peraltagem. Quando era criança eu deveria pular muro do vizinho para catar goiaba. Mas não havia vizinho. Em vez de peraltagem eu fazia solidão. Brincava de fingir que pedra era lagarto. Que lata era navio. Que sabugo era um serzinho mal resolvido e igual a um filhote de gafanhoto.

Cresci brincando no chão, entre formigas. De uma infância livre e sem comparamentos. Eu tinha mais comunhão com as coisas do que comparação. Porque se a gente fala a partir de ser criança, a gente faz comunhão: de um orvalho e sua aranha, de uma tarde e suas garças, de um pássaro e sua árvore. Então eu trago das minhas raízes crianceiras a visão comungante e oblíqua das coisas. Eu sei dizer sem pudor que o escuro me ilumina. É um paradoxo que ajuda a poesia e que eu falo sem pudor. Eu tenho que essa visão oblíqua vem de eu ter sido criança em algum lugar perdido onde havia transfusão da natureza e comunhão com ela. Era o menino e os bichinhos. Era o menino e o sol. O menino e o rio. Era o menino e as árvores.


manoel de barros – memórias inventadas – a infância