sábado, 30 de maio de 2009


Não me venha falar na malícia de toda mulher.
Cada um sabe a dor e a delícia de ser o que é.
Não me olhe como se a polícia andasse atrás de mim.
Cale a boca e não cale na boca notícia ruim.
Você sabe explicar, você sabe entender tudo bem.
Você está, você é, você faz, você quer, você tem.
Você diz a verdade e a verdade é o seu dom de iludir.
Como pode querer que a mulher vá viver sem mentir.

dom de iludir - caetano veloso

quinta-feira, 21 de maio de 2009

Meu pai era ferroviário. Trabalhava na Contadoria da Estrada de Ferro Araraquara. Um homem que gostava de ler e de escrever. Em minha casa tinha uma biblioteca com uns trezentos, quatrocentos livros. Pense bem: um ferroviário do interior, na década de 40, com essa porrada de livros.

Minha família era remediada. Não pobre, porém remediada. Nossa casa era modesta, e o orgulho de meu pai era este: ter casa própria. Foi para ele uma vida infernal rolar entre hipotecas, prestações na Caixa e outras. Mas a casa era dele. Nasci naquela casa, eles (minha mãe já morreu) moram lá até hoje. Houve reformas, mas o chão, a terra é a mesma que esteve embaixo de mim, aquela em que sempre pisei. Penso se não houve algum atavismo, algum simbolismo na necessidade que encontrei, depois de muitos anos de casado, já aos 38 anos, de comprar uma casa. E será que posso encontrar também algum simbolismo no fato de, subitamente, eu me ver sufocado por essa casa, pela sua posse, ansiando por uma liberação? A necessidade de ter a casa sufocou meu pai anos e anos. E, de repente, eu me liberei da casa. Me separei. Me coloquei de novo em disponibilidade.

O primeiro ano foi muito difícil em São Paulo. Eu me transformei num repórter sem saber sequer andar pelas ruas. Cada dia precisava descobrir por própria conta e erro. Eu era tímido para entrevistar as pessoas, precisava me violentar. Morava em pensão, almoçava e mal jantava. Por sorte, dona Nina me guardava o prato. Era comida fria no fim da noite, quando voltava. Ao menos, comia. A Última Hora me pagava 3.000 cruzeiros e eu deixava na pensão 2.500. Tirando os descontos me sobravam 275 para condução, cinema, supérfluos. Ou seja, nada. Eu odiava chuva, porque molhava o sapato, tinha que deixar no forno ou com jornais dentro para secar. Não tinha amigos, não conhecia ninguém. Tímido, introvertido, custava a me ligar a alguém. Mas eu não queria voltar. Voltar seria o fracasso, e eu tinha saído para vencer. Comecei a descobrir a noite, os encantos de ficar pelas ruas, entrar e sair de boates, conviver com os tipos, ver o sol nascer. Passado o primeiro ano, estava fixado. Me tornei paulistano.


ignácio de loyola brandão
viver e escrever (edla van steen)

quarta-feira, 13 de maio de 2009

Uma criatura

Sei de uma criatura antiga e formidável,
Que a si mesma devora os membros e as entranhas,
Com a sofreguidão da fome insaciável.
Habita juntamente os vales e as montanhas;
E no mar, que se rasga, à maneira de abismo,
Espreguiça-se toda em convulsões estranhas.
Traz impresso no fronte o obscuro despotismo.
Cada olhar que despede, acerbo e mavioso,
Parece uma expansão de amor e de egoísmo.
Friamente contempla o desespero e o gozo,
Gosta do colibri, como gosta do verme,
E cinge ao coração o belo e o monstruoso.
Para ela o chacal é, como a rola, inerme,
E caminha na fera impertubável, como
Pelo vasto areal um vasto paquiderme.
Na árvore que rebenta o seu primeiro gomo
Vem a folha, que lento e lento se desdobra
Depois a flor, depois o suspirado pomo.


machado de assis
exposição no museu da língua portuguesa - são paulo - 2008

terça-feira, 12 de maio de 2009

A novidade que tem no Brejo da Cruz
é a criançada se alimentar de luz.
Alucinados, meninos ficando azuis
e desencarnando lá no Brejo da Cruz.
Eletrizados, cruzam os céus do Brasil.
Na rodoviária, assumem formas mil.
Uns vendem fumo, tem uns que viram Jesus,
muito sanfoneiro cego tocando blues.
Uns têm saudade e dançam maracatus,
uns atiram pedra, outros passeiam nus.
Mas há milhões desses seres que se disfarçam tão bem,
que ninguém pergunta de onde essa gente vem.
São jardineiros, guardas-noturnos, casais,
são passageiros, bombeiros e babás.
Já nem se lembram que existe um Brejo da Cruz,
que eram crianças e que comiam luz.
São faxineiros, balançam nas construções,
são bilheteiros, baleiros e garçons.
Já nem se lembram que existe um Brejo da Cruz,
que eram crianças e que comiam luz.


brejo da cruz - música-doc de chico buarque

terça-feira, 5 de maio de 2009

não durmo
acendo o abajour para clarear
o pensamento
mas não há o que ver
quando não há luz
por dentro

bianca ramoneda