quarta-feira, 30 de março de 2011

Me lembro que estava num hotel em Buenos Aires, vendo na tevê um drama de boxe. Desliguei o som, só ficou a imagem do lutador já cansado (tantas lutas) e reagindo. Resistindo. Acertava às vezes, mas tanto soco em vão, o adversário tão ágil, fugidio, desviando a cara. E ele ali, investindo. Insistindo. Mas o que mantinha o lutador de pé? Duas vezes beijou a lona. Poeira, suor e sangue. Voltava a reagir, alguém sugeriu que lhe atirassem a toalha, é melhor desistir, chega! Mas ele ia buscar forças sabe Deus onde e se levantava de novo, o fervor acendendo a fresta do olho quase encoberto pela pálpebra inchada. Fiquei vendo a imagem do lutador solitário- mas quem podia ajudá-lo? Era a coragem que o sustentava? A vaidade? Simples ambição de riqueza, aplauso? Tudo isso já tinha sido mas agora não era mais, agora era a vocaç ão. A paixão. E de repente me emocionei: na imagem do lutador de boxe, vi a imagem do escritor no corpo a corpo com a palavra. Se o pensamento verte sangue, desse sangue estão impregnados os livros.

lygia fagundes telles