sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

Escrever para mim é uma necessidade orgânica. Não conseguiria viver sem escrever, porque só escrevendo consigo expulsar os meus demônios e vencer a minha angústia. É como uma terapia a que me submeto diariamente, desde os quinze anos. Quando eu era rapaz, vivia atormentado por três idéias mórbidas: temia ficar louco, temia o suicídio e morrer cedo. Só escrevendo, escrevendo qualquer coisa, sem parar, até ficar exausto, conseguia afugentar esses temores. Por isso, talvez, tenha sido levado compulsivamente a escrever muita coisa que preferia não ter escrito. Como alguém que se viu obrigado, em circunstâncias adversas, a viver uma vida que não era a sua durante uma parte de sua existência. E, claro, preferia ter vivido só a minha e toda ela.

dias gomes - viver e escrever (edla van steen)

sábado, 21 de fevereiro de 2009

A mocidade é o que os italianos chamam de um nome tão bonito: la stamina. A seiva, o fogo, que permite amar e criar. Quando se perde isso, perde-se tudo.

simone de beauvoir - a mulher desiludida

terça-feira, 17 de fevereiro de 2009

Faltavam dois dias para o Natal de 1938. Era meia noite e Arthur Bispo do Rosário descansava no quintal do casarão da família Leone, na Rua São Clemente, 301, em Botafogo, Rio de Janeiro. De repente, a cortina preta que revestia o teto do mundo se rasgou sobre ele e deu passagem a sete anjos de aura azulada e brilhosa. Vinham do céu ao seu encontro. Era um chamado. A noite se fez dia para convocá-lo à sua missão. Bispo recebeu os anjos e os acolheu em algum canto da psique. A glória absoluta: ele era enfim reconhecido. Como Jesus Cristo? “Está falando com ele”, arriscaria a confissão.

Dopado por um exército angelical, entre visões e quimeras, Bispo saiu pela rua deserta, na abafada noite de 22 de dezembro. Peregrino da solidão, estava acostumado a caminhar sem paradas obrigatórias, madrugada adentro, naquele Rio da década de 30. Ele bateu o portão da casa da São Clemente, no sopé do Morro Dona Marta, andou alguns quarteirões e subiu no primeiro bonde que o levaria a seu destino. Ao patrão, o advogado Humberto Magalhães Leone, disse apenas que iria se apresentar na Igreja da Candelária.

Botafogo, Flamengo, Catete, Centro. Aquela seria mais uma de suas andanças insones, não fossem a luz azul, o reconhecimento e a fileira de cruzes na Rua Primeiro de Março. Candelária, Igreja São José, Mosteiro de São Bento: o cavaleiro errante fez daquele roteiro mágico a sua rua da amargura. Arrastou-se por uma via crúcis dois dias, escoltado por anjos, subjugado por ordens do além.

Bispo jurava que uma cruz luminosa lhe riscava as costas. Poder sagrado e aferido. Pois o grande dia havia chegado, e ele era então reconhecido por seres invisíveis. Guiado por imagens, arrastado por vozes que sopravam segredos ao ouvido, Bispo se apresentou. O ponto final daquele calvário de delírios foi o Mosteiro de São Bento. Depois de peregrinar pela cidade, ele entrou no templo do centro e anunciou à confraria de padres: Vim julgar os vivos e os mortos.

Silêncio apostólico. Perdido no vácuo entre o fato e a ficção, Bispo entendeu que os frades do Mosteiro o reconheciam. Afinal, era um enviado de Deus, trazia a marca do crucifixo gravada no corpo. O dia 24 de dezembro de 1938 foi um divisor de águas psíquico para Arthur Bispo do Rosário. Os sinos dobravam por ele naquele Natal, os céus se abriam para reverenciar sua majestade, mas ele acabaria sob o domínio da autoridade máxima na Terra.

Bispo, despejado da sanidade, rendido a fantasia no centro do Rio, foi enviado ao hospício da Praia Vermelha. Numa noite de Natal, ele saltou do delírio para a realidade crua. Ou vice-versa.


luciana hidalgo – arthur bispo do rosário, o senhor do labirinto
Trancado num quarto-forte da Colônia Juliano Moreira, hospício carioca,
Arthur Bispo do Rosário criou, ao longo de cinquenta anos, um mundo novo.
Miniaturas, mantos, estandartes brotaram de suas mãos, ganharam cor,
deram sentido à sucata recolhida, aqui e ali,
pelos internos e funcionários do asilo psiquiátrico.
Bispo morreu em 1989.
Em 1995, seus bordados, assemblages e estandartes
representaram o Brasil na Bienal de Veneza
e foram requisitados para mostras em Paris e Nova York.

quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009

Estive sempre de pé no ônibus, espremido entre o ferro
da cadeira e o rumor dos passageiros.
Educado a ser o último, cedi o lugar a gestantes e idosos.
Estive sempre de pé no ônibus, me defendendo
ao largo do corrimão de tantos rumos,
alianças e ponteiros com paradas diferentes.
E o brado irritante do cobrador ainda a exigir
um passo à frente.

O fato de não ter sido é mais trabalhoso
do que a fama. Prossegui a imaginar,
sondando o que poderia ter vivido.
Disperso, anônimo, no comício do mar
e nas trevas.

Diminuindo o risco, reduzimos a possibilidade
de nos libertar. O medo, o medo, o medo
é o que nos faz escolher.

Descobre-se um amor
na iminência de perdê-lo.

fabricio carpinejar - terceira sede