terça-feira, 24 de novembro de 2009

Quando estava morrendo, aos 90 anos de idade, em 1935, [minha avó] chamou-nos a seu lado e disse, em inglês, com aquele fio de voz: “Não passo de uma velha que está morrendo muito, muito devagar. Não há nada de notável nem interessante nisso”. Não via razão alguma para que a casa toda se alterasse e se desculpava por demorar tanto a morrer.

Meu pai era muito inteligente e, como todos os homens inteligentes, muito bondoso. Certa vez, disse-me que prestasse bastante atenção nos soldados, nos uniformes, nos quartéis, nas bandeiras, nas igrejas, nos sacerdotes e nos açougues, já que tudo isso iria desaparecer, e eu poderia um dia contar a meus filhos que vira essas coisas. Até agora, infelizmente, não se cumpriu a profecia.

Foi ele que me revelou o poder da poesia: o fato de as palavras serem não apenas um meio de comunicação, mas também símbolos mágicos e música.

Sempre fui muito míope e usei óculos, e era um tanto frágil. Como a maioria de meus ancestrais haviam sido soldados e eu sabia que nunca o seria, desde muito jovem me sentia envergonhado de ser um homem de livros e não de ação. Durante toda a minha juventude, pensei que o fato de ser amado equivalia a uma injustiça. Não me sentia digno de nenhum amor em especial e recordo que meus aniversários me enchiam de vergonha, porque todos me cumulavam de presentes e eu pensava que não havia feito nada para merecê-los, que era uma espécie de impostor. Por volta dos trinta anos consegui superar essa sensação.

Minha cegueira vinha avançando gradativamente desde a infância. Foi como um lento entardecer de verão. Não havia nada de patético nem de dramático nela. A partir de 1927 sofri oito operações nos olhos, mas desde fins da década de 50, quando escrevi o Poema dos dons, já estava cego para ler e escrever. Em meu poema falo da magnífica ironia de Deus, que me deu ao mesmo tempo 800 mil livros [como diretor da Biblioteca Nacional] e a noite.

Uma consequência importante da cegueira foi meu gradual abandono do verso livre em favor da métrica clássica. Na verdade, a cegueira obrigou-me a escrever novamente poesia. Já que os rascunhos me eram negados, eu devia recorrer à memória. É obviamente mais fácil memorizar o verso que a prosa, e o verso rimado mais que o verso livre. O verso rimado é, pode-se dizer, portátil. Pode-se andar pela rua ou estar no metrô enquanto se compõe e aprimora um soneto, pois a rima e a métrica possuem virtudes mnemônicas.

A fama, como a cegueira, chegou-me aos poucos. Eu nunca a havia esperado e nunca a havia procurado.

Aos 71 anos de idade, continuo trabalhando e cheio de planos. No ano passado escrevi um novo livro de poemas, Elogio da sombra. A “sombra” do título refere-se tanto à cegueira como à morte.

As pessoas têm sido inexplicavelmente boas comigo. Não tenho inimigos e, se certas pessoas se disfarçaram como tais, elas têm sido demasiadamente gentis para me causar dor. Todas as vezes que leio algo que escreveram contra mim, não só compartilho o sentimento, como penso que eu mesmo poderia fazer muito melhor o trabalho. Talvez eu devesse aconselhar os aspirantes a inimigos que me enviem suas queixas de antemão, com a certeza absoluta de que receberão toda a minha ajuda e apoio. Secretamente, até desejei escrever, sob pseudônimo, uma longa invectiva contra mim mesmo. Ah! As cruas verdades que guardo em meu interior!

Em minha idade, deve-se ter consciência dos próprios limites, pois esse conhecimento talvez possa levar à felicidade. Quando era jovem, pensava que a literatura era um jogo de variações engenhosas e surpreendentes. Agora que encontrei minha própria voz, parece-me que o fato de retocar e voltar a corrigir meus rascunhos não os melhora muito nem os prejudica.

Suponho que já escrevi meus melhores livros. Isso me dá uma espécie de tranquila satisfação e serenidade. No entanto, não acho que tenha escrito tudo. De algum modo, sinto a juventude mais próxima de mim hoje do que quando era um homem jovem. Não considero mais a felicidade inatingível, como eu acreditava tempos atrás. Agora sei que pode acontecer a qualquer momento, mas nunca se deve procurá-la. Quanto ao fracasso e à fama, parecem-me totalmente irrelevantes e não me preocupam. Agora o que procuro é a paz, o prazer do pensamento e da amizade. E, ainda que pareça demasiado ambicioso, a sensação de amar e ser amado.

ensaio autobiográfico - jorge luis borges (1899-1970)