quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxaguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer.

graciliano ramos

sábado, 6 de dezembro de 2008

quem gosta do que eu gosto pode ir, sem medo:

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quinta-feira, 4 de dezembro de 2008

A dança das ruas

Sinto falta de caminhar na calçada, sentir a vibrante fluidez da troca de olhares, sinto falta de reconhecer o outro, encontrar um amigo que não via há muito tempo, parar para ver um cão vadio, um escritor que passa de chinelas, uma amiga de escola, que agora tem um neto, ver rostos que nunca vi, ou rostos que vi e não me recordo exatamente onde, mas de que nunca me esqueci, rostos que me trazem mensagens novas sobre o ser humano, há um prazer incomparável no encostar ao balcão do botequim para tomar um café, comprar maçã no quitandeiro, cumprimentar o jornaleiro todos os dias com uma sensação de perenidade, comprar queijo e vinho no mercado da esquina, sair da padaria e sentir nos braços o calor do pão, reclamar do carro estacionado na calçada, quanto tudo é pretexto para se começar um dedo de prosa na rua, rua, que um dia foi o retrato da vida moderna e hoje é um resto abandonado, a vida se passa nas vias expressas onde não há pessoas, mas carros e ônibus barulhentos onde todo mundo perde o rosto, se passa nos refúgios de compras onde imperam a compulsão e o tédio, sinto falta da rua do sonho, do erotismo que há no apenas existir, no simplesmente passar, sinto falta do deixar-me ir, como é a vida, de pisar na profundidade e na beleza da sujeira urbana, na bosta do cachorro, olhar na beleza do mendigo e da criança que vende chiclete, do flanelinha, dos desesperadamente pobres e dos cronicamente desempregados, nas ruas repletas de crime, violência, ódio penetrante e medo, sinto falta do prazer de deslizar entre os demônios da propaganda e as moléstias do sucesso, falta de ver os velhos que caminham e dar uma flertada apenas para despertar suas fantasias talvez esquecidas num porão da memória, daquele estado de perpétuo movimento, da sensação de perigo e da iminência do amor, de entrar e sair nas livrarias, de reconhecer as minúcias do meu bairro, sentir nas esquinas o vento que levanta minha saia, olhar os vestidos nas vitrines e ter por um instante o corpo perfeito do manequim de resina, caminhar na rua, furar o sinal de pedestres, caminhar, banhada pelas luzes cambiantes, pelo redondilhado de sol sob as amendoeiras e entregar-me à adoração do crepúsculo, em caminhos simples que levam apenas de uma a outra calçada.

ana miranda - caros amigos - dez/2000