sexta-feira, 30 de maio de 2008

PEDAÇOS DE MULHER
Martha Medeiros

Pedro Almodóvar, cineasta espanhol, certa vez justificou sua admiração pelas mulheres declarando que elas eram feitas de muito mais pedaços do que os homens. Li essa declaração na resenha que a revista Veja fez a respeito do filme Tudo sobre minha mãe, que merece cada elogio que vem recebendo mundo afora.

Todo ser humano é um quebra-cabeça composto por muitas peças, e concordo com Almodóvar: nós, do sexo feminino, fazemos parte daqueles jogos mais complicados, difíceis de montar. Quantos pedaços formam uma mulher? Tantos que ela vive inacabada.

Nossos pedaços custam a se encaixar. O epicentro do quebra-cabeça costuma ser a maternidade, um pedaço grande que precisa combinar com o pedaço da luxúria, com o pedaço da solidão e também com aquela partezinha da preguiça, que ninguém avisou que fazia parte do jogo. Há peças variadas que, vistas separadamente, não têm nada a ver uma com a outra, mas juntas fazem shazam. O pedaço da submissão que precisa encaixar com o pedaço da rebeldia, o pedaço da juventude que tem que encaixar com o pedaço da menopausa, um pedaço desgarrado que tem que encaixar com o imenso pedaço da nossa árvore genealógica, e vários outros pedaços aparentemente sem combinação: nossa parte homem, nossa parte criança, nossa parte louca, nossa parte santa, nossa parte lúcida, nossa parte conivente, nossa parte viciada, e mais aquelas desgastadas pelo uso, e umas que se perderam, e outras tão pequenas que ficaram invisíveis. Como encaixar o que não se revela nem pra nós mesmas?

Almodóvar filma as mulheres como se elas fossem pizzas de vários sabores. Mezzo freiras, mezzo HIV positivas. Mezzo doces, mezzo apimentadas. Mezzo dramáticas, mezzo divertidas. Almodóvar nunca fecha o quebra-cabeça, apenas esparrama na tela os vários pedaços que, unidos, nos transformariam num ser único, e que, uma vez pronto, já não empolgaria ninguém. Daí a importância de haver sempre uma peça faltando, pois é isso que nos mantém acordados, assim no cinema como na vida.

Outubro de 1999


non stop - crônicas do cotidiano

quinta-feira, 29 de maio de 2008

Singularidades, vejo-as de três espécies. Seguramente, as pessoas singulares, insubstituíveis. Nossos papéis sociais poderão substituir-nos uns pelos outros, mas não poderemos substituir uns aos outros em nossa qualidade absolutamente singular. Cada rosto é único.

Mas há outras singularidades. Há as obras de arte. Cada obra de arte é a solução de um problema. Cada estilo é a solução singular trazida a um problema singular: como combinar a forma, a luz, a cor? Cada pintor resolve esse problema à sua maneira.

E depois, a singularidade existe também na natureza. Uma paisagem não é um recorte do espaço, simplesmente; é uma totalidade única em seu gênero, na sua cor, ou em outra coisa qualquer. Então, aí, penso em pintores que pegaram, por exemplo, o mesmo feixe de feno em plena luz ou nas trevas. Monet, as ninfas... essas variações ínfimas da mesma coisa, de algum modo abstrata, que seriam os nenúfares; mas é cada vez único, singular.

paul ricœur – filósofo francês
(a respeito da frase de espinosa: quanto mais compreendemos as coisas singulares, mais compreendemos deus)

quarta-feira, 28 de maio de 2008

Deve-se aprender a viver por toda a vida e, por mais que tu talvez te espantes, a vida toda é um aprender a morrer.

sêneca - sobre a brevidade da vida

segunda-feira, 26 de maio de 2008

Neste dia perfeito em que tudo amadurece e não é somente a fruta que se amorena, um raio de sol caiu sobre a minha vida: olhei para trás, olhei para a frente, nunca tinha visto tantas e tão boas coisas de uma só vez. Não foi em vão que enterrei hoje o meu quadragésimo quarto ano: eu podia enterrá-lo – o que nele era vida está salvo, é imortal.

nietzsche – ecce homo

sexta-feira, 23 de maio de 2008

Penso que a poesia é algo tão íntimo, algo tão essencial, que não pode ser definido sem se diluir. Seria como tentar definir a cor amarela, o amor, a queda das folhas no outono... Eu não sei como podemos definir as coisas essenciais. Penso que a única definição possível seria a de Platão, precisamente porque não é uma definição, senão porque é um fato poético. Quando ele fala da poesia ele diz: "Essa coisa leve, alada e sagrada". Isso, eu acredito, pode definir, de certa forma, a poesia, já que não a define de um modo rígido, senão que oferece à imaginação essa imagem de um anjo ou um de pássaro.

jorge luis borges - conversaciones com roberto alifano

sábado, 3 de maio de 2008

Sou uma lágrima do sol.
Sou uma colina
pela qual os poetas ascendem.
Inventei o alfabeto
depois de observar o vôo das garças
que faziam letras com as pernas.
Sou um lago na planície.
Uma palavra numa árvore.
Sou uma montanha de poesia.
Uma blitz no inarticulado.
Sonhei
que todos os meus dentes caíram
mas a minha língua sobreviveu
para contar a história.
Porque sou um silêncio poético.
Sou um bando de canções.


lawrence ferlinghetti - trecho do poema autobiografia
(herdeiro literário de walt whitman e t.s. eliot,
lawrence ferlinghetti é o pai de todos os poetas beats)