quarta-feira, 1 de abril de 2009

Durante 50 anos, meu pai manteve um diário. Sob pretexto de que sua caligrafia era ilegível, ele ditava o texto para minha mãe. Às vezes, eu ficava escutando atrás da porta. Odiava (e me fascinava) a transformação que as palavras do diário impunham a acontecimentos que eu tinha presenciado e que foram, a meu ver, insignificantes. Na descrição do meu pai, a banalidade do cotidiano se tornava uma vasta produção teatral cujo tema maior era sempre, aliás, o seu amor pela minha mãe.

Por exemplo, num vilarejo perto de Milão, numa tarde de domingo, com um frio de cão e uma chuva de afogar rãs, meu pai procurava o sacristão fantasma que talvez tivesse a chave de uma capela meio destruída, onde, segundo constava, sobravam os restos de um afresco do século 15. Minha mãe devia estar de saco cheio tanto quanto nós.

Mas meu pai ditaria esse transtorno como o encontro encantado do céu cinzento de Lombardia com o sorriso de minha mãe (que ele era o único a ter entrevisto), com a dedicação do sacristão (que, provavelmente, maldisse esse erudito que aparecia num domingo de inverno), com o sublime gesto do pintor (do qual gesto não sobrava quase nada) e, enfim, com o tormento e a esperança dos soldados que, num momento da Segunda Guerra, deviam ter encontrado amparo na capela, cujos muros eram grafitados por balas de metralhadora. Tudo isso convergiria para compor um momento mágico nas páginas do diário e, de fato, na vida dele.

Quando meu pai morreu, fiquei com seus diários. Leio de vez em quando. Não procuro informações sobre sua vida, apenas o segredo de sua paixão de viver e de amar.


contardo caligaris – quinta coluna

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