quinta-feira, 30 de abril de 2009

Quando era adolescente não conseguia gostar do meu pai. Para ser sincero, ele era a pessoa que eu mais odiava no mundo. Quando ele chegava em casa, o ar se contaminava com uma névoa tensa e tóxica. Eu o via como um chato opressor e conformista, um eco doméstico do regime militar que reprimia o Brasil, apoiado pelo imperialismo americano. Minha oposição a ele era então mais do que um direito, era um dever ideológico.

Tudo nele me causava repulsa, mas eu havia eleito aquele seu jeito nauseante de comer arroz e feijão, colocando o arroz por cima e o feijão embaixo, como o ato soberano da horripilância universal. A ostensiva correção moral de seu mastigar, justapondo ruidosamente os movimentos da mandíbula com a respiração nasal, me exasperava em níveis galácticos.

Serviu-se arroz e feijão em um fatídico domingo no qual meus avós, pais do meu pai, almoçavam em casa. Eu já devia estar mal-humorado, e ele começou a comer fazendo aquele barulho prepotente de quem vai corrigir o mundo. Me descontrolei e disse, na frente de todos, pra ele parar de comer como um porco nojento. Meu pai me expulsou da mesa, e fui jogar pingue-pongue no pátio do prédio. Horas depois voltei para casa, e meu pai estava bebendo água na cozinha. Ele me olhou com rancor e disse que estava muito ofendido, que não queria mais falar comigo.

Passaram-se muitas décadas, e o passado é um longínquo e incompreensível país estrangeiro. Sinto um amor descomunal pelo meu pai e me preocupo muito com sua saúde, particularmente com a alimentação. Vejo nele delicadeza, generosidade e bom humor – o contrário do que enxergava o adolescente pentelho.

Talvez eu esteja fantasiando, mas no último Natal flagrei uma expressão de desgosto no rosto do meu filho ao me ver mastigar um pedaço de torrone. Tentei ignorar, mas naquela noite não consegui dormir.

Um dos motes mais presentes na liturgia judaica é “le dor va dor”, “de geração em geração”. Uma energia cósmica é descarregada dos pais para os filhos e rebatida dos filhos para os pais – atração que se transforma em repulsa, ódio e amor; vida e morte se estapeando no espaço e no tempo. Nem bons, nem maus, somos meros condutores de uma força que nos transcende.

Tenho 47 anos e ainda não sei bem quem vou ser quando crescer.

henrique goldman, cineasta – revista trip fevereiro 2009

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