sexta-feira, 3 de abril de 2009

A lápide de Ozu não tem nome, apenas um antigo ideograma japonês, MU, que significa “vazio”, “nada”.

Eu pensei sobre o símbolo ao voltar no trem. O nada. Quando criança eu sempre tentava imaginar o nada. A idéia me enchia de medo. “Nada” simplesmente não pode existir, eu pensava. Apenas o que é de verdade pode existir. A realidade. Pouquíssimas idéias são mais vazias e inúteis quando aplicadas ao cinema.

Cada um sabe, sozinho, o que significa a percepção da realidade. Cada pessoa vê a sua realidade com seus próprios olhos. Ela vê os outros e, acima de tudo, as pessoas que ama. Ela vê os objetos que a cercam, vê as cidades e os campos onde mora, mas também vê a morte, a mortalidade do homem e a transitoriedade dos objetos. Ela vê e experimenta o amor, a solidão, a felicidade, a tristeza, o medo. Em resumo, cada pessoa vê, sozinha, a vida. E cada pessoa sabe, por si só, o grande abismo que existe entre as experiências pessoais e a representação dessas experiências na tela. Nós aprendemos a aceitar que a grande distância separando o cinema da vida é tão perfeitamente natural que ficamos assombrados quando subitamente descobrimos algo verdadeiro ou real num filme. Não precisa mais do que um gesto de uma criança no fundo do trem, ou um pássaro que passa voando, ou uma nuvem jogando sua sombra sobre a cena durante um instante.

É uma raridade no cinema de hoje encontrar tais momentos de verdade, onde pessoas ou objetos se mostram como realmente são. Isso era o que havia de único nos filmes de Ozu, principalmente nos últimos. Eles eram grandes momentos de verdade. Não apenas momentos; eram verdades duradouras, que se estendiam da primeira à última imagem. Filmes que, verdadeira e continuamente, lidavam com a vida em si, e nos quais as pessoas, os objetos, as cidades e os campos revelavam-se. Tal representação da realidade, tal arte, não se encontra mais no cinema. Um dia, se encontrou.

MU, nada. O que resta hoje.


wim wenders, a respeito dos filmes de yasujiro ozu - tokyo ga

Um comentário:

Ana Aitak disse...

eu não sei por que mas, a custo nao chorei lendo esse texto. Acho que me emocionei quando ele diz que cada um vê a vida sozinho.

palavras encantadoras e eu nem sabia quem era Ozu.