quinta-feira, 21 de maio de 2009

Meu pai era ferroviário. Trabalhava na Contadoria da Estrada de Ferro Araraquara. Um homem que gostava de ler e de escrever. Em minha casa tinha uma biblioteca com uns trezentos, quatrocentos livros. Pense bem: um ferroviário do interior, na década de 40, com essa porrada de livros.

Minha família era remediada. Não pobre, porém remediada. Nossa casa era modesta, e o orgulho de meu pai era este: ter casa própria. Foi para ele uma vida infernal rolar entre hipotecas, prestações na Caixa e outras. Mas a casa era dele. Nasci naquela casa, eles (minha mãe já morreu) moram lá até hoje. Houve reformas, mas o chão, a terra é a mesma que esteve embaixo de mim, aquela em que sempre pisei. Penso se não houve algum atavismo, algum simbolismo na necessidade que encontrei, depois de muitos anos de casado, já aos 38 anos, de comprar uma casa. E será que posso encontrar também algum simbolismo no fato de, subitamente, eu me ver sufocado por essa casa, pela sua posse, ansiando por uma liberação? A necessidade de ter a casa sufocou meu pai anos e anos. E, de repente, eu me liberei da casa. Me separei. Me coloquei de novo em disponibilidade.

O primeiro ano foi muito difícil em São Paulo. Eu me transformei num repórter sem saber sequer andar pelas ruas. Cada dia precisava descobrir por própria conta e erro. Eu era tímido para entrevistar as pessoas, precisava me violentar. Morava em pensão, almoçava e mal jantava. Por sorte, dona Nina me guardava o prato. Era comida fria no fim da noite, quando voltava. Ao menos, comia. A Última Hora me pagava 3.000 cruzeiros e eu deixava na pensão 2.500. Tirando os descontos me sobravam 275 para condução, cinema, supérfluos. Ou seja, nada. Eu odiava chuva, porque molhava o sapato, tinha que deixar no forno ou com jornais dentro para secar. Não tinha amigos, não conhecia ninguém. Tímido, introvertido, custava a me ligar a alguém. Mas eu não queria voltar. Voltar seria o fracasso, e eu tinha saído para vencer. Comecei a descobrir a noite, os encantos de ficar pelas ruas, entrar e sair de boates, conviver com os tipos, ver o sol nascer. Passado o primeiro ano, estava fixado. Me tornei paulistano.


ignácio de loyola brandão
viver e escrever (edla van steen)

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