quinta-feira, 11 de março de 2010

Em 1950, passando por São Paulo a caminho do mar, pretendendo fugir num navio qualquer, assisti Anjo de Pedra, de Tennessee Williams, no TBC. Não sei se ainda chocado com o rompimento com meu mundo familiar, um pouco intimidado com a perspectiva de me empregar num navio e sumir no mar, tudo o que se debatia dentro de mim me levou a sentir uma paralisação diante de um momento de extrema beleza: Cacilda Becker interpretando a personagem Alma. Procurei-a depois do espetáculo e contei tudo o que me confundia, que me desnorteava de maneira desesperante. No dia seguinte, ela me ouviu pacientemente, durante horas. Eu era um moço estranho, problemático, irritadiço, que se sentia marginal, estrangeiro no meu meio, de diálogo difícil. Mas, diante dela, tudo veio à tona, e eu me revelei inteiramente. Depois de horas de confissão, ela me disse: “Por que não entra na Escola de Arte Dramática? Creio que o teatro poderá ser a sua expressão, mas não pense em representar”. Olhou-me bem firme nos olhos e disse, como se descesse dentro de mim: “Tenho certeza de que o seu caso é escrever”.

A minha família pertence ao mundo da aristocracia da terra, família de fazendeiros. Fazendeiro é coisa que nunca fui, nem sou depois de liberto. Posso ser um “fazendeiro do ar”, na classificação de Carlos Drummond de Andrade. Naquela ocasião eu não sabia o que era, embora procurasse ansiosamente saber e, por isso, vivia em constantes conflitos. Até que o choque chegou num tom de exasperação, e eu parti em busca do mar. O conselho de Cacilda foi a âncora que me fixou ao pé da serra. Desde então tenho procurado vencer um outro tipo de mar, o mar muitas vezes traiçoeiro da sensibilidade criativa.

É preciso ter visão sociológica para saber o que é uma família tradicional da terra, como a família Junqueira, que é a minha. Meu pai, autêntico representante dessa família, tinha três grandes valores: o cavalo, o cachorro e a caça. A caçada era o esporte do homem da terra. Nesse meio agreste, de caçadores, de couros e penas abatidas, de toque de cachorrada, de corridas desabaladas nos cerrados, nos campos e nas matas, de homens que se atiravam dentro de qualquer rio para cercar suas caças, nesse mundo que ainda não conhecia o rádio, a televisão e muito menos a arte, de pessoas que só erguiam os olhos, não para contemplar as estrelas, mas para saber se choveria durante a noite para que as semeaduras brotassem e no meio delas as caças deixassem seus rastos; nesse mundo de paixões violentas, o que poderia representar um garoto que amava os livros, se comovia com a música e que, caçando, torcia pela caça? Nesse continente de prazeres primitivos, como poderia viver um ser que amava as estrelas, que só via as pastagens no entardecer como telas enquadrando a beleza da paisagem, que na mata admirava as árvores que a pintavam floridas, que se condoía com os peixes fisgados, com as aves abatidas, que tinha sensibilidade que aquele mundo não podia compreender e, o pior, levantava suspeita sobre ele? Como não nascer conflitos entre esse ser e o mundo que o rodeava e que tentava modificá-lo?

Devo confessar uma coisa: desde pequeno, enfrentei esse mundo de igual para igual no que diz respeito à determinação de ser. Ele não me agrediu mais do que eu o agredi. Defendi com unhas e dentes, como fera acuada, todos os meus valores, e é natural que os conflitos aparecessem e fossem dilacerantes, porque eu era um adversário à altura. Esse mundo era violento quando me agredia, e eu também era ao me defender. Assim, os choques foram terríveis: matei tanto quanto fui morto.

A reconciliação com esse mundo foi completa e profunda, na medida em que ele é o principal tema de tudo que escrevo. Se não conseguia viver nele, nem aceitar seus valores, vivi através das obras escritas, recriando aqueles valores literariamente. E é sendo o que sou, como dramaturgo, que provo ter sempre pertencido a ele, como continuo pertencendo artisticamente.

Quanto a meu pai, com quem tanto lutei, acho bastante revelador o que aconteceu quando ele veio a São Paulo assistir A Moratória, minha primeira peça encenada profissionalmente. Ele me pediu que não fosse com ele ao teatro, mas que o encontrasse depois da sessão. Enquanto esperava, fiquei vagando pelas imediações do Teatro Maria Della Costa. Quando as pessoas começaram a sair, me postei na calçada, bem em frente à entrada. Ele veio lá de dentro sozinho, chegou perto de mim, passou o braço no meu ombro e descemos a rua Paim em direção à Nove de Julho. O silêncio era cheio de perguntas que determinariam respostas definitivas e reveladoras. Na esquina da Nove de Julho, onde havia um muro cercando um terreno vazio, ele me puxou, me abraçou e rompeu em soluços. Fiquei aguardando, hirto, quase petrificado. Não sabia o que dizer, embora sentisse uma profunda alegria. E, bem no meu ouvido, porque estávamos abraçados, ouvi sua voz embargada: “Eu não sabia, meu filho, eu não podia compreender. Peço que me perdoe. Há muitas maneiras de se amar as mesmas coisas. Eu sou um fazendeiro atrasado. Eu não podia compreender.” Essa era a reconciliação com o ser humano, porque a outra, com o mundo da terra, ficara viva lá no palco.

Foi minha única peça a que ele assistiu: morreu um ano depois. Tínhamos começado a dialogar, depois de 34 anos de conflitos. Mas quando o diálogo ia realmente se aprofundar, a morte o interrompeu. Por isso, acredito que tudo vai continuar como era, porque meus sentimentos só poderiam ser mudados pelo diálogo começado, mas não desenvolvido. É assim que, literariamente, continuo dialogando com ele e com seu mundo. Esta é a minha verdadeira condição de autor: continuar buscando o pai perdido dentro de mim. Mas ele se esconde como as caças matreiras, corre rasto atrás, confundindo suas pegadas, mantendo-me prisioneiro de uma busca sem fim. Essa busca incessante é a dinâmica da minha criação literária, mesmo sabendo que só procuramos o que já encontramos, paradoxo terrível de uma criatividade que atormenta e me empurra sempre para frente, atazanando como a mosca de Io.

jorge andrade (1922/1984) - dramaturgo

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