Naquela noite (de 1963 ou 64), deixei o grupo avançar e fui ficando para trás ouvindo as conversas e a cantoria se afastando aos poucos. Quando as risadas tornaram-se quase inaudíveis, deitei num dormente e apoiei a cabeça no trilho, disposto a enfrentar meu medo. Olhei então para o magnífico céu de Brodosqui, tentando medir a distância entre as estrelas, tentando entender a escala daquilo e sentir onde eu me encaixava.
Desde os 7 anos eu tinha esse hábito. Ao deitar antes de dormir, olhando o teto escuro do meu quarto, me projetava no tempo imaginando onde iria acabar minha vida, procurando entender como seria estar morto, como seria o não-ser. O pensamento nunca passava de um ponto, no qual eu vislumbrava um grande vazio que parecia a porta do Nada. Tomava sempre um susto com o que sentia. Era um frio, meu coração disparava e meu pensamento era desviado para outro lugar, como se um dispositivo automático ativasse um reflexo para me tirar daquele estado assustador. Era apavorante.
Detestava a sensação, mas não conseguia evitar e sempre voltava para aquela situação. Era o mesmo tipo de atração ou vertigem que sentimos quando estamos à beira de um precipício. Houve um período em que comecei a dormir com alguma luz acesa para evitar a tentação de pensar na minha própria morte. Olhar para o céu à noite sempre foi um gatilho infalível para me levar à beira do abismo, por isso eu evitava fazê-lo. Mas naquela noite eu resolvi enfrentar.
Deitado ali, olhei para o céu, disposto a não me desviar. Queria pensar aquele pensamento até o fim. Fui assolado por um pavor que nunca mais esqueci. Deitado ali num dormente, diante daquela imensidão, tive a noção precisa da minha insignificância. Tomei uma espécie de choque gelado, foi tão terrível que não consegui nem chorar. Corri para junto do bando e prometi a mim mesmo nunca mais fazer aquilo. Nunca esqueci aquela experiência que foi um dos momentos mais marcantes da minha vida. E foi tão simples: um moleque deitado no trilho, olhando para o céu.
Aos 14 anos, eu tinha a certeza absoluta de que teria uma morte prematura e não emplacaria os 30. Conseguia aceitar bem este “destino” e, inclusive, avisava a todos “o que iria me ocorrer”. Minha mãe ficava brava cada vez que eu tocava nesse assunto, mas eu sabia que seria assim. Contava meus anos ao contrário: quantos anos faltavam e não quantos já haviam passado. Só que errei. Passei dos 30. Mesmo assim a morte continua sendo o grande tema da minha vida. Penso nela todos os dias, várias vezes por dia, aliás. Só que agora a contagem regressiva termina lá pelos 100 (conto com o desenvolvimento da ciência) e não mais nos 30.
Como alguns palestinos, todos nós carregamos a bomba que vai nos explodir a qualquer momento. Muita gente consegue viver como se ela não estivesse ativada. Eu não consigo. Escuto o tiquetaque da minha bomba o dia todo. Compreendo perfeitamente o pavor do Capitão Gancho, ao escutar o tiquetaque do seu próprio tempo passando, vindo do despertador na barriga do crocodilo.
Aquela experiência do trilho parece que alterou minha perspectiva frente à vida para sempre. Me sinto às vezes como um extraterrestre ou como um historiador. Alguém que, muitas vezes, apenas observa a vida de longe, sem estar envolvido apaixonadamente no dia-a-dia. Mas estar consciente do próprio fim a cada instante não é uma atitude de todo mórbida ou depressiva, como se possa imaginar. Pelo contrário. Ter consciência do meu próprio limite e da minha absoluta irrelevância ante a grandiosidade do todo me torna mais tolerante, quero crer.
biografia prematura - fernando meirelles - cineasta
Um comentário:
Fernando precisa conhecer seu alter-ego: maurício. Lindo isso, lindo vc, meu amor! Choro!
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